Visita à Herdade Aldeia de Cima. A frescura dos vinhos do Alentejo
É lá em cima que se fazem alguns dos melhores vinhos cá de baixo. Confuso? A Herdade Aldeia de Cima, uma propriedade em socalcos, no Alentejo, é exemplo desta equação.
A adega da Herdade Aldeia de Cima é especialmente bonita, com pequenos potes de barro, uma linha de ânforas brancas e grandes barricas de 500 litros, além dos enormes balseiros de 3000 litros, todos em madeira. A estrutura surpreende desde o início, com duas torres de cereais que se destacam à entrada, erguendo-se sobre os edifícios térreos, num conjunto imaculadamente caiado de branco e com portas e janelas debruadas a verde.
Pelo cenário, somos tentados a pensar que o trabalho a sério não podia ser feito ali, mas não nos enganemos: esta é uma das adegas mais bem equipadas do país. Dos potes, às ânforas italianas em cocciopesto (uma mistura de argila com gesso), às madeiras dos balseiros, tudo foi escolhido com cuidado para que os enólogos Jorge Alves e António Cavaleiro possam criar vinhos distintos, elegantes e tipicamente alentejanos – embora, talvez, diferentes do que estamos habituados na região.
É uma adega quase boutique, com uma produção de 50 mil garrafas divididas por seis vinhos, sendo que a entrada de gama começa nos 17,5 euros, preço dos Reserva. No topo estão os Garrafeira e os Myundru, muito especiais. Três referências e sempre com a versão tinto e branco.
As vinhas são igualmente surpreendentes, plantadas em altitude, em terrenos xistosos, entre os 230 e os 400 metros, em plena Serra do Mendro, linha que divide o alto do baixo Alentejo e a segunda serra mais alta da região. Parte da vinha está plantada em patamares de um bardo, a lembrar mais a paisagem do Douro do que a do Alentejo. Não será um capricho, mas porque assim tem de ser quando a vinha é plantada em declive, como acontece no Douro e noutras regiões de montanha, como Itália ou Áustria, por exemplo.
A orografia alentejana dá uma ajuda, formando um corredor natural que encaminha as brisas do Atlântico para esta zona da Vidigueira, que assim tem a maior amplitude térmica e as temperaturas noturnas mais baixas da região. Há uma diferença de quase 20 graus entre o dia e a noite, e não é por acaso que a zona é conhecida como uma boa terra de brancos.
A herdade é extensa, com 2400 hectares, datando do século XVIII as primeiras referências a uma aldeia de Sant’Anna que, por estar no cume da serra, depressa ganhou o nome "de cima". Por aqui já se cultivaram cereais (daí as duas torres), mas foi o sobreiro e o montado que atraíram o empresário Américo Amorim, que transformaria a herdade numa das principais fornecedoras do negócio de família. Após a sua morte, passou diretamente para as mãos da filha Luísa, que conhecendo bem o setor vitivinícola e as potencialidades da herdade – gerindo já a Quinta Nova de Nossa Senhora do Carmo, no Douro, e a Taboadella, no Dão –, decidiu expandir o projeto, agora em conjunto com o marido, Francisco Teixeira Rêgo.
Desde 2017, foram plantadas mais de trinta parcelas, algumas micro, todas escolhidas pelo potencial que apresentavam. Alguns dos nomes vale a pena recordar, como a Vinha do Alfaiate, da Aldeya, de Sant’Anna ou das Courelas. Sempre com castas nacionais e, na sua maioria, autóctones: Antão Vaz, Perrum, Arinto ou Roupeiro nas brancas; Aragonês, Trincadeira, Alicante Bouschet, Alfrocheiro ou Tinta Grossa nas tintas. Pelo meio, uns pós de Alvarinho ou de Baga para "temperar". "O sal e a pimenta", brinca a equipa de enologia. No fundo, ambas servem um propósito muito semelhante: tornar os vinhos mais frescos e aumentar-lhes a longevidade em garrafa.
Myndru
No sopé da Serra do Mendro, a 230 metros de altitude, encontram-se as courelas da Cevadeira e da Zorreira, duas vinhas muito antigas, entretanto adquiridas. A equipa utiliza sobretudo Alfrocheiro da primeira e Tinta Grossa da segunda, para o Myndru tinto. Trata-se de um vinho muito autêntico, pouco carregado na cor, delicadamente complexo e com uma frescura deliciosa. Na segunda edição, a proporção de Alfrocheiro foi reduzida (de 50 para 30%), enquanto a de Tinta Grossa foi aumentada (de 15 para 30%) e adicionou-se um pouco mais de Baga (de 15 para 20%), o que resultou num vinho mais firme e mineral. Se o primeiro já era excelente, este ficou ainda melhor, e parece um vinho fadado para sair em anos ímpares (Colheita de 2019, na primeira edição; 2021, na segunda).
O branco, por outro lado, vem da vinha da Aldeya, já pensada de raiz para este vinho, que conta com Roupeiro, Perrum e Alvarinho (só uns 10%). É a novidade do ano e resulta num vinho muito seco na boca, mineral e com acidez bem vincada. O principal elemento diferenciador dos Myndru está no estágio, sem madeira ou cimento, todo ele feito entre os potes (30%, seis meses) e as ânforas (70%, 14 meses). Isto no caso do tinto, porque o branco estagia na totalidade por 16 meses nas grandes ânforas de argila e gesso que foram buscar a Itália. A própria composição das ânforas é personalizada, sendo, elas mesmas, um dos principais intervenientes da enologia no vinho.
Garrafeira
Mais tradicionais, os Garrafeira estagiaram longamente nos grandes balseiros de carvalho francês – o grande segredo deste vinho, que lhe confere notas suaves e boa estrutura. Para que um vinho seja classificado como Garrafeira no Alentejo (diferente de outras regiões), tem de obter as notas mais altas da câmara de provadores, o que já é uma garantia da qualidade. São vinhos mais facilmente reconhecíveis como alentejanos, também por serem menos surpreendentes. A composição das castas explica: Alicante Bouschet e Aragonês, no tinto; Arinto e Antão Vaz, no branco (complementados por Alvarinho, Perrum e Roupeiro). Já mencionámos que a Vidigueira é famosa pelos seus brancos, e não nos lembramos de ter provado melhor.
Reserva
É injusto deixar dois vinhos de grande qualidade para o final, mas "last but not least" aplica-se bem aqui. A experiência deve, portanto, começar com os vinhos da Aldeia de Cima (HAC) precisamente por estes dois Reservas. Ao contrário dos anteriores, que se distinguiam pelo estágio em madeira ou gesso/argila, nos Reserva utiliza-se tudo, incluindo as "regressadas" cubas de cimento, cada vez mais na moda. Cada casta estagia separadamente num meio diferente: o Alicante Bouschet passa 12 meses em barrica de carvalho francês de segundo ano; a Trincadeira, seis meses nas Tinajas de terracota de 150 litros; e o Aragonês, seis meses em depósitos de cimento Nico Velo (2.600 litros). O Alfrocheiro estagia seis meses em ânforas de cocciopesto. No branco, o processo é semelhante: Antão Vaz em balseiro, Alvarinho e Arinto em depósitos de cimento, e Perrum e Roupeiro em barricas de segundo ano.
O branco destaca-se pela densidade e é interessante notar como a percentagem de Alvarinho aumenta do Myndru (10%) ao Garrafeira (15%) até chegar ao Reserva, com 20% – o que lhe confere um toque mais aromático. O Alvarinho adaptou-se bem do Minho ao Alentejo.
Mel, Medronho e Montado
Muito mais do que vinha, que não ocupa sequer 1% da área, a HAC é Montado, e Luísa Amorim tem vindo a implementar um projeto de sustentabilidade para preservar este ecossistema no futuro. O Alentejo possui ainda a maior extensão de montado do mundo, mas perdeu já três quartos da sua vegetação original e corre sérios riscos de desertificação. O foco está na pecuária, com 1200 ovelhas e dezenas de colmeias a ajudar a manter vivas as florestas de sobreiros, azinheiras, carvalhos e medronheiros. Uma gestão agroflorestal sustentável que acaba por ter no mel e na aguardente de medronho, para além dos vinhos e da cortiça, evidentemente, a sua razão de ser e sustentação.
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