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Isto Lembra-me Uma História: Um bom vinho, mas branco

Em época de vindimas, o tema não podia ser mais apropriado: um presidente de uma câmara do País bebeu vinho. Um vinho caro, para uns; banal para Isaltino Morais. A questão merece debate e reflexão.

Foto: Getty Images
17 de setembro de 2023 | Diogo Xavier

Como é que uma pessoa sabe se um vinho é caro ou é barato? Quando pomos alguma coisa numa escala de valor, e ainda mais quando a medida usada para avaliar é o dinheiro, a equação torna-se complexa, porque tem, necessariamente, de conter uma outra escala subjetiva: o gosto. Ou seja, a primeira pergunta deverá ser: como é que uma pessoa sabe se o vinho é bom ou é mau?

Embora o preço de um vinho possa servir como aviso ou advertência para uma experiência potencialmente terrível - se custa menos de três euros, talvez seja melhor evitar -, ou como promessa exuberante de uma escolha segura e requintada - se custa mais de trinta euros, vai ter de provar porquê -, a verdade é que um vinho é bom ou é mau consoante a sensibilidade e o gosto de quem o bebe. Também podíamos questionar aqui a educação do gosto, a cultura enológica e a vastidão da experiência de cada um, mas tudo isso pouco importa. O que interessa é que alguém escolha um vinho porque gosta dele, e também porque reconhece que o valor de mercado se adequa à expectativa do prazer que virá com a sua degustação.

Diz o povo que a vida é demasiado breve para que andemos aqui a perder tempo a beber vinho mau. Mentira não é, em nenhuma das orações: a vida é demasiado breve e beber vinho mau é uma enorme perda de tempo - e até de dinheiro, por pouco que seja (o dinheiro perdido nunca é pouco - e isto é outro ensinamento do povo). Expostas as variáveis, poder-se-á depreender que um vinho é barato quando o seu valor monetário é inferior àquilo que a expectativa do comprador considera ser o valor justo, de acordo com o seu gosto; um vinho caro será aquele que não cumpre este requisito. 

Todos estes vetores são, claro, voláteis - e ainda mais hoje em dia, numa situação de pós-pandemia e com uma guerra na Europa, que causaram crises nas mais diversas produções de matérias-primas e sua distribuição, levando a grandes oscilações nos preços daquelas e ainda nos seus transportes, com os aumentos do combustíveis, o agravamento da inflação e a aparentemente inexorável subida das taxas de juro. Por cá, os vinhos médios e acessíveis, isto é, aqueles adequados a um consumo mais genérico e imediato, em situações do quotidiano, têm sofrido aumentos bastante razoáveis nos últimos 12 ou 18 meses - e isto é dito a partir da experiência empírica, não tenho como atestar documentalmente a minha perceção.

Vem toda esta introdução acerca dos vinhos a propósito do fait divers que animou os últimos dias: Isaltino Morais, presidente da Câmara Municipal de Oeiras, terá bebido algumas vezes Pêra Manca. "É Pêra Manca, mas é branco, não é tinto", terá dito Isaltino em sua defesa. Parece um detalhe de somenos, mas trata-se, na realidade, de uma defesa legítima, como se verá mais adiante. O caso é mais complexo do que pode parecer. Isaltino tem sido julgado em praça pública e em notas de rodapé de televisões que se dedicam a dar outras notícias - porque isto não é, em princípio, grande notícia, pelo menos não chega para abrir noticiários nem para fazer chamadas de primeira página - porque terá gastado para cima de 139 mil euros em almoços de trabalho. O número, posto assim no abstrato, pode sugerir que o alcaide de Oeiras foi almoçar sozinho umas mil vezes a uma marisqueira da Ribamar, por exemplo. Mas com algum contexto, dissipa-se ligeiramente a miragem do luxo e da ostentação.

Não estou aqui para defender Isaltino, como não estaria para defender qualquer outra pessoa que pudesse ter feito uma má gestão de dinheiros públicos, esse bem comum cada vez mais desrespeitado, e numa altura em que é também cada vez mais escasso. Todavia, decidi fazer algumas contas. Se é desde 2017, e considerando que cada ano profissional do presidente da Câmara de Oeiras tem 48 semanas, subtraindo as quatro semanas que terá de férias; tendo também em conta que cada semana é constituída por cinco dias úteis; e aceitando que todas estas faturas foram emitidas com o NIF do município ao longo dos últimos sete anos, temos que o autarca almoçou, em horário laboral, 1680 vezes. Se dividirmos os 139 mil euros por 1680 almoços, temos um preço médio por almoço de cerca de €82,73 por refeição - sem arredondamentos nem gorjetas. Se considerarmos ainda a possibilidade de Isaltino se fazer acompanhar, à mesa do almoço, de algum - só um - outro colega do executivo camarário, o preço do almoço desce aos €41,36 per capita. Se formos mais longe e atendermos à elevadíssima probabilidade de o autarca convidar e receber para almoçar diplomaticamente, ao longo destes sete anos, alguns - terão sido dezenas? Centenas? - representantes de instituições, organismos e empresas, por exemplo, em equipas que não raramente incluem assessores e assistentes, o valor por almoço, por cabeça vai descer ainda mais. E quem é que hoje consegue comer como deve ser na Grande Lisboa por menos de €15? Sem beber vinho mau?

E é aqui que chegamos ao Pêra Doce - Pêra Doce, mas branco, não o tinto. É que o Pêra Doce tinto custa por volta dos quatrocentos euros - dependendo da colheita, pode ir dos cerca de €330 até aos €450, em edições regulares e a preços de garrafeira. Já o branco, também a preços de garrafeira, rondará os 55 ou 60 euros, dependendo também do ano. Há uma série de conclusões a extrair deste emaranhado de números. A primeira é a de que, em princípio, Isaltino não bebe muito, mesmo quando está acompanhado. Num restaurante, o Pêra Manca branco pode facilmente ascender aos €80, pelo que o presidente da câmara não terá pedido, pelo menos com regularidade, mais do que uma garrafa por refeição. Se o fez, terá tido de compensar o pedido em almoços seguintes, abstendo-se de tomar o seu vinho. 

Outra indicação é a de que, se bebesse uma garrafa por dia, a Isaltino sobraria dinheiro para não mais do que um rissol de camarão e uma bica normal a finalizar, pedida em simultâneo com o pedido da continha, se faz favor. O maior pecado de Isaltino Morais nesta história do vinho não é ter andado por aí a abusar e a pedir Château Lafitte, Petrus ou Romanée-Conti. A grande falha de Isaltino é, quanto a mim, dizer do Pêra Manca branco que é "um vinho banal", por oposição ao tinto com o mesmo nome. Banal não será, primeiro porque não é barato (e isto não quer dizer que seja caro, recorrendo à equação de há pouco) e segundo porque tem qualidade elevada, o que faz com que o adjetivo "banal" seja difícil de aplicar a este vinho. Já vimos que a vida é demasiado curta para se beber vinho mau, mas o tempo também não passa numa velocidade suficientemente furiosa a ponto de só nos saciarmos com de Pêra Manca para cima. Como diz nos anúncios publicitários, é preciso beber com moderação.

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