Viver

Uma amnistia no mínimo questionável

Há várias coisas no caso da decisão do TAD de aplicar a amnistia da visita papal a Miguel Afonso que parecem não bater certo. Mas é mesmo a falta de bom senso e de critério da opinião pública que mais causam espanto.

Foto: Famalicão
23 de outubro de 2023 | Diogo Xavier
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Dois meses e meio depois, as Jornadas Mundiais da Juventude e a visita do Papa Francisco a Portugal ainda dão que falar. Infelizmente, não é, como as muito otimistas previsões fizeram acreditar na altura, por causa do robusto rasto de dinheiro que deixou a passagem daquele milhão e meio de jovens pela Grande Lisboa ao longo de sete demorados dias. Esse rasto perdeu-se - ou de uma perspetiva mais suave, continua a ser uma miragem, tal como era antes da realização das próprias jornadas, e apesar de toda a fé que muitos tinham nesse súbito enriquecimento da economia nacional graças às Jornadas.

A visita papal a este País laico ainda faz correr tinta, sim, mas por causa da amnistia que trouxe consigo. A Lei 38-A/2023 de 2 de agosto, que determina a redução e o perdão de penas (dependendo dos crimes) e a amnistia de uma série de infrações e contraordenações, voltou à ordem do dia, depois de uma decisão, no mínimo, polémica do Tribunal Arbitral do Desporto. Lá chegaremos, à tal decisão. Primeiro, relembramos a lei. Piedosa e necessariamente cristã, foi escrita para perdoar as infrações de pessoas, mas não de todas as pessoas. Perdoaram-se só os jovens - ou aqueles que foram condenados, com prisão ou com multa, por faltas e deslizes cometidos quando ainda eram jovens. 

A definição dos amnistiadores para jovem é tão difícil quanto singela: estabeleceram os doutos elaboradores de leis que a idade limite para a juventude seriam os 30 anos. Porque não os 31? Porque não os 29? Não tem mal nenhum ter ficado nos 30, o número é redondo e, em princípio, todos concordarão, jovens e menos jovens, que passar aquele pórtico que separa os vintes dos trintas é um momento com o seu quê de assustador. Porém, não há como negar que fica no ar a ideia de que, numa das reuniões em que os progenitores da regra, alguém terá dito "ouçam lá, mas uma pessoa é jovem até que idade? Isto tem de ter um limite, senão fica muito vago, por um lado, e perigosamente subjetivo, por outro". Por economia de esforço, um dos legisladores terá dito "não será para aí aos 30?", sugestão a que os demais terão anuído em concordância, pois sim, 30 é o fim de se ser jovem. Se já tinha 31, tinha também idade para ter juízo e para não andar a infringir nem a contraordenar, muito menos a praticar crimes.

Além de circunscrita ao perdão dos jovens, isto é, dos cidadãos com o máximo de 30 anos à altura dos seus pecados, a amnistia também não foi desenhada para aliviar a punição de crimes de sangue, crimes sexuais e ainda outros menos físicos, tais como o branqueamento de capitais ou a corrupção, só para dar alguns exemplos. Curiosa e surpreendentemente, a abrangência e a aplicação desta amnistia não cobria também algumas multas de trânsito e de estacionamento - e podem acreditar na minha palavra, porque eu sei perfeitamente do que falo.

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Estou a relembrar toda esta história da amnistia pela visita papal e a enumerar algumas das suas muitas pias e beatas qualidades porque me parece que a intenção - a lei pode ser questionável, mas a intenção da mesma não tem como suscitar dúvidas: foi desenhada para nos trazer o exemplo fraternal através do calor do espírito humano e por via do perdão, ora reduzindo anos de cadeia a quem roubou, ora perdoando multas a quem prevaricou moderadamente -, dizia eu que a intenção da amnistia me parece ter sido recentemente subvertida quando um tribunal, o cada vez mais célebre e menos popular TAD - Tribunal Arbitral do Desporto, tomou uma decisão que é, no mínimo, e a vários níveis, questionável, dando continuidade a uma longa escola de decisões judiciais que deixam encanitado qualquer cidadão português, do mais instruído ao mais analfabeto, por tantas vezes faltar à concordância com o mais elementar bom senso e a mais básica noção de moral.

Decidiu, então, o Tribunal Arbitral do Desporto, no dia 18 de outubro, extinguir as cinco infrações disciplinares muito graves que fizeram com que o treinador de futebol Miguel Afonso, depois da decisão do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, visse a sua atividade suspensa por 35 meses - ou seja, quase, quase três anos - e fosse obrigado a pagar uma multa de mais de cinco mil euros. Porquê? Porque o Colégio Arbitral do TAD considerou que era aplicável a Lei 38-A/2023 de 2 de agosto, ou seja, aquela relativa à amnistia pela visita papal.

O que temos aqui é o seguinte: Miguel Afonso, condenado em novembro de 2022 pela Federação, recorreu da sentença, meses mais tarde, para o TAD; o TAD manteve a decisão da Federação; agora, depois da entrada em vigor, no início de setembro, da lei da amnistia, o Colégio Arbitral do TAD voltou atrás com a decisão e considerou que o perdão das "infrações graves" que tinham levado ao castigo do treinador.

Há aqui vários detalhes que não batem certo, a começar pelo proverbial e elementar bom senso. É que Miguel Afonso não era um treinador qualquer e as "infrações graves" que sobre ele impendiam não eram pequenas falhas de comportamento. Miguel Afonso era - ou é, dependendo da decisão final e definitiva, e ainda do bom senso dos clubes na prospeção dos seus elementos e constituição das suas equipas - treinador de futebol feminino. Entre outros, treinou as equipas séniores de futebol feminino de Rio Ave (2020-2021), Ovarense (2021-2022) e Famalicão (2022-2023). O técnico, de 41 anos, foi acusado - e condenado pela Conselho de Disciplina da FPF, depois de analisado o caso, ouvidas as testemunhas e atendidas e ponderadas as provas - de, pelo menos, cinco casos graves de assédio sexual e discriminação com base no género (talvez esta acusação pudesse mais facilmente ser traduzida por "misoginia", mas dependeria da interpretação da lei e da própria definição do termo). Estes casos que levaram ao castigo do treinador, bem como à quebra de contrato por parte do Famalicão, que dispensou os serviços de Afonso depois de vindas a público as acusações, remontam à época de 2020-2021, quando o técnico ainda estava ao serviço do Rio Ave.

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Das transcrições das mensagens apresentadas pelas jogadoras que denunciaram o treinador, resultam passagens verdadeiramente chocantes, em que não restam dúvidas das intenções, da falta de noção e da clara e total ausência de vocação de Miguel Afonso para este (e possivelmente para outros como este) cargo. Não reproduzi aqui essas mensagens, mas elas estão acessíveis, não estão em segredo de justiça.

Acerca do bom senso, não haverá muito mais a dizer, a não ser, talvez, relembrar que, há precisamente dois meses, os comentadores - tanto os encartados das televisões e dos jornais como os anónimos encapotados das redes sociais - enlouqueceram de raiva a propósito do caso do beijo de Luis Rubiales e Jenni Hermoso na final do Campeonato Mundial de futebol feminino, que a Espanha ganhou. Nessa altura, ninguém hesitou: Rubiales era um monstro. Agora, perante um caso de um treinador que algumas denunciantes apelidam de predador, com provas analisadas e aceites e múltiplos depoimentos que levaram à sua condenação, um tribunal decide levantar-lhe os castigos aplicando-lhe uma amnistia que, pelas minhas contas, nem sequer lhe seria aplicável - Miguel Afonso teria 37 ou 38 anos quando cometeu as "infrações graves"; essas infrações eram de teor sexual e discriminatório -, não se ouve a fúria das multidões, só um burburinho aqui e ali. Não é fácil decifrar este país.

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