Prazeres / Sabores

Vinhos ao ritmo da natureza num Alentejo verdadeiro

O sul belo e autêntico, a vinha cuidada e a sustentabilidade levada a peito são os ingredientes mágicos da Tapada de Coelheiros, em Arraiolos. Quer viver experiências reais com vinho, natureza quase selvagem e muitos animais? Chegou à Tapada de Coelheiros.

Foto: DR
Ontem às 16:27 | Patrícia Barnabé

A humildade de cuidar em profundidade, com tempo e atenção à minúcia, é uma atitude consciente e de bom gosto. Por isso, rara. Ainda mais num tempo onde a velocidade e a quantidade parecem prevalecer. São qualidades bastante distintivas e evidentes no mundo dos vinhos, onde sobressaem os melhores. E apesar dos rumores de que se bebe cada vez menos, em geral, todos sabemos que a subida de qualidade na vinicultura só faz bem a todos – natureza e património, produtores e saúde de cada um. Quando chegamos à Tapada de Coelheiros, na Igrejinha, concelho de Arraiolos, a máxima do menos é mais (e melhor) é ali regra evidente e feliz. Numa sala de tectos altos, segurados por traves de madeira, à boa maneira simples do sul, o sofá divide a sala de provas e a loja que guarda dezenas de garrafas delicadamente pousadas numa imobilidade sagrada e a uma temperatura estável. São mimos aninhados em móveis pintados num belo verde campestre francês, também ele do sul, os puxadores são seixos em madeira, supomos que apanhados naqueles 800 hectares de quinta. Encontram-se pormenores em cortiça, das colheres de água tradicionais destas terras mais áridas e quentes, aos vasos das plantas. E as mesas são compridas, feitas para partilhar. 

João Raposeira, Luís Patrão e Alberto Weisser
João Raposeira, Luís Patrão e Alberto Weisser Foto: DR

Cá fora, num pedaço de horizonte semisselvagem, encontramos um Alentejo "orgânico", como se ousa dizer hoje de tudo o que é natural. A ideia é mexer o menos possível e deixar a natureza acontecer, com olho atento e alguma ajuda. Nestas terras fazem-se vinhos desde 1991 valorizando-se primeiro a natureza, depois o património e a tradição, num mundo em constante mudança. Terra de pinheiros mansos, montado de sobreiros e azinheiras, e de um frondoso pomar de nozes. No meio deles, a vinha convive como um ecossistema natural e o seu vinho bom é resultado deste cuidado e de uma aposta consciente na agricultura regenerativa, que numa parcela é também biodinâmica. São cerca de 50 hectares de vinha e 20 de nogueiras, no cruzamento de duas ribeiras, a do Cabido e a de Arraiolos, por isso é uma terra abençoada por linhas de água e charcas, e servida pela barragem próxima, que já tem uns bons 100 anos, construída por um dos antigos donos desta terra, o conde da Azarujinha. 

Nestas terras fazem-se vinhos desde 1991 valorizando-se primeiro a natureza, depois o património e a tradição
Nestas terras fazem-se vinhos desde 1991 valorizando-se primeiro a natureza, depois o património e a tradição Foto: DR

Aqui chegou a plantar-se arroz, e é também terra de azeite e de "pastoreio holístico", explica-nos o responsável pela agricultura biológica, João Raposeira, o diretor agrícola e de sustentabilidade da Tapada de Coelheiros, visivelmente apaixonado pela terra que agarra com as mãos para explicar a magia. "Todo o enquadramento se faz de plantas autóctones com baixa manutenção e que equilibram as pragas." Vemos vinhas de touriga de um lado e de alicante bouchet do outro, vinha velha de cabernet sauvignon e depois mais touriga. "A vinha tem produzido muito bem e queremos uma uva concentrada", por isso esta vinha mais velha é um tesouro, e é pouco regada, a sua água é monitorizada, em qualidade e poupança. "A coberta vegetal, as ervas junto às vinhas, também fazem o seu trabalho e têm objetivos", aponta, "uns são naturais, outros têm intenções de fertilidade, são diferentes raízes para diferentes microrganismos, e esta zona só de flores é para atrair insetos auxiliares. Um caos organizado, portanto", sorri.

Provamos uvas touriga, rijas e a estalar na boca. O gestor agrícola pega no termómetro e mostra-nos a diferença de temperatura junto à vinha, e são menos quase 10 graus, devido à sua localização e ao que a rodeia. Parece que vai ser uma zona ideal para plantar arinto, comenta, a mais tardia das castas brancas. E passamos de jipe pela zona de brancos, que estão cada vez melhores no Alentejo: arintos, alvarinhos, antão vaz e um pouco de chardonnay. Mais à frente encontramos diferentes castas de tinta e paramos a admirar as vinhas de sequeiro. No seu site, a Tapada de Coelheiros descreve-se como orgulhosamente biodinâmica, biológica, holística e regenerativa, aqui não se utilizam produtos químicos e seguem-se "práticas de maneio subtil das culturas", com produtos de base natural como leite, extratos de algas e de plantas, de forma a "aumentar a resistência da flora, exponenciando-a em vez de a desgastar". A ideia é que os solos, as suas bactérias e fungos, possam estar saudáveis e fazer o que sabem: curar a terra

A Tapada de Coelheiros descreve-se como orgulhosamente biodinâmica, biológica, holística e regenerativa, aqui não se utilizam produtos químicos e seguem-se
A Tapada de Coelheiros descreve-se como orgulhosamente biodinâmica, biológica, holística e regenerativa, aqui não se utilizam produtos químicos e seguem-se "práticas de maneio subtil das culturas" Foto: DR

E a sensação de vida não acaba aqui. Se Tapada significa uma mata cercada para aprisionar animais para caça, hoje evoluiu para ser um lugar onde deambulam cerca de 1200 ovelhas, que pastoreiam a vinha e o pomar, e ainda se vêem veados e gamos esquivos entre os arbustos. João Raposeira fala-nos de Allan Savory, um agricultor dos Zimbabwe que criou o conceito de gestão holística, um sistema de pensamento para gerir recursos. Ao estudar antílopes em manada percebeu como estes vão comendo o que aparece e só receiam os predadores. "Para ter um pasto bem comido é necessária uma alta carga animal que enquanto come fertiliza o solo e deixa microorganismos que depois trabalham a matéria orgânica. As ovelhas ajudam a renovar o solo."

Também nos cruzamos com galinhas pretas lusitanas, às vezes ameaçadas pelas raposas, já recompostas nas suas famílias numerosas e rodeadas de pintaínhos. Consta que ainda há patos, lebres e coelhos, que não vimos, mas encantamo-nos com os abrigos construídos para as famílias de aves e morcegos, predadores naturais das pragas, que são monitorizados por um biólogo que percebe as dinâmica específicas destas populações. E encantam-nos as colmeias, para já apenas 14 produzem mel, mas querem que sejam mais e que este venha a ser 100% biológico. Neste mosaico de sistemas variados, tudo tem um propósito. Observamos as nogueiras, a sua cortiça vai para a Amorim, e onde dantes havia uma paisagem lunar, hoje estão plantas trazidas da floresta pelas próprias ovelhas. Assim como o coberto vegetal melhora a drenagem, o arejamento e equilibra a matéria orgânica, "é uma esponja que aumenta, e fica mais fértil porque tem mais microorganismos." 

"Para ter um pasto bem comido é necessária uma alta carga animal que enquanto come fertiliza o solo e deixa microorganismos que depois trabalham a matéria orgânica. As ovelhas ajudam a renovar o solo." Foto: DR

Esta tapada foi dada como dote de casamento, em 1467, a D. Branca de Vilhena e D. Ruy de Sousa, um dos responsáveis pelo Tratado de Tordesilhas, esse mesmo que dividiu o mapa-mundo em dois. Em 1862, é comprada por Isadora Maria Calhau à família Falé, que entretanto a detinha, e é a primeira proprietária que decide morar na então herdade Branca de Almeida e Coelheiros que, em 1887, é comprada pelo Conde da Azarujinha, o primeiro a plantar vinha aqui, que se saiba. Em 1974 é adquirida por D. Diogo Pereira Coutinho e é parcialmente ocupada por populares, depois da revolução dos cravos. Só sete anos mais tarde, Joaquim e Leonilde Silveira compram a herdade Pomar de Nogueiras e plantam vinha de castas escolhidas, cabernet sauvignon, chardonnay, arinto, roupeiro e trincadeira, tão inovadoras para a época. Em 1991, é lançado o primeiro Tapada tinto, claro, da autoria de António Saramago. Em 1996 é muito premiado e considerado o melhor do Alentejo, e um dos melhores do país

Em 1991, é lançado o primeiro Tapada tinto da autoria de António Saramago. Em 1996 é muito premiado e considerado o melhor do Alentejo, e um dos melhores do país
Em 1991, é lançado o primeiro Tapada tinto da autoria de António Saramago. Em 1996 é muito premiado e considerado o melhor do Alentejo, e um dos melhores do país Foto: DR

A segunda vida da Tapada de Coelheiros começa em 2015, quando o brasileiro Alberto Weisser compra a propriedade e se muda para Portugal, convida Luís Patrão a pensar a enologia e a viticultura e, em 2017, os vinhos renascem como os conhecemos hoje. Se o rótulo do vinho de Saramago, que alguns de nós conhecemos, foi inspirado na tapeçaria de Arraiolos, estes inspiraram-se no bordado de Arraiolos, para a nova gama de branco e de tinto, com uma viticultura então única no país. O C é inspirado nos nós tradicionais dos tapetes. Em 2022 é lançado o rosé e a herdade recebe certificação biológica. Em 2023 inicia-se todo este projeto de resiliência de ecossistemas a que chamam de Bio Montado, com áreas-piloto de boas práticas agrícolas e de recuperação ecológica.

Às tantas espreitamos uma estufa que produz hortícolas que, assim como as maçãs e pêras dantes seguiam para Évora, agora muitas ficam pelo novo restaurante Taco. O nosso jipe sobe uma encosta de 300 metros para ir conhecer o antigo pavilhão de caça, que então estava em obras para albergar uma nova casa: o restaurante Taco. Onde dantes se fazia uma pausa para um "taco" ou uma "bucha" é agora um lugar de convívio e contemplação da natureza e do que ela nos oferece, pois tem uma vista lindíssima sobre a propriedade. "É um novo lugar que celebra o nosso compromisso em unir tradição e inovação, o nosso terroir e o respeito pela terra", afirmou o gestor agrícola, referindo-se a este novo espaço, um ponto de encontro para quem procura o verdadeiro Alentejo. Para o inverno, existem acolhedoras lareiras, interiores e exteriores, para todo o ano assegura-se um pôr-do-sol magnífico. 

Este é o lugar para viver experienciar o vinho e o a sua terra, com passeios em jipe, como este, e passeios pedestres que dão uma volta à tapada
Este é o lugar para viver experienciar o vinho e o a sua terra, com passeios em jipe, como este, e passeios pedestres que dão uma volta à tapada Foto: DR

Este é o lugar para viver o vinho e a sua terra, com passeios em jipe, como este, e passeios pedestres que dão uma volta à tapada. Existem programas para fotografar, com brunches, piqueniques e almoços tradicionais, pratos e produtos típicos do Alentejo, e todos incluem provas de vinho, das mais clássicas às ligadas ao umbigo do terroir. Com a inauguração do Taco foi criada uma nova experiência, com cerca de três horas, e que consegue receber até 40 pessoas, mas há muito por onde escolher: provas e visitas todos os dias da semana, de segunda-feira a domingo, é espreitar o site e reservar através do WhatsApp (+351 927 324 551), do endereço de email enoturismo@coelheiros.pt ou via telefone (+351 266 470 000).

A maioria da equipa que recebe os visitantes é composta por vizinhos, que vivem na Igrejinha, Vale Pereiro, Vimieiro, outros vêm de todo o país. O seu manifesto é claro: "São mais de 500 anos de Tapada de Coelheiros e foi esse o tempo certo – nem a mais, nem a menos. É por isso que trabalhamos com um modelo agrícola de futuro, regenerando o que temos hoje, para que possa existir amanhã. Não nos esquecemos de que somos apenas guardiões de um imensurável património – e não fugimos à responsabilidade de sermos guardiões despertos e valentes."

Porque é preciso coragem para fazer bem e em bom.

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