Van Zellers & Co e os vinhos do Porto a 22 mil euros
A Van Zellers & Co acaba de lançar uma coleção super rara com três vinhos de Porto muito, muito velhos, do tempo da filoxera. Três sobreviventes como já não se encontram.
"Parece uma ampulheta, mas estragada, porque o vinho não volta como a areia", brinca Cristiano van Zeller sobre a embalagem dos vinhos do Porto muito antigos que estamos a provar. Colheitas de 1933 e 1934, 1940, 1950, 1968 (em dose dupla) e 1976, que ainda podemos encontrar na Van Zellers & Co, por encomenda. A embalagem remete-nos evidentemente para a passagem do tempo, crucial para permitir a estes grandes tawnies revelar todo o seu potencial. Dois até são brancos (o de 1940 e um dos de 1968), embora a idade já não o permita perceber, porque os brancos tendem a ganhar cor com o tempo em madeira e os tintos a perder, ao ponto de ser impossível distingui-los.
São vinhos extraordinários – especialmente o de 1934 (e 1933), o branco de 1940 e o de 1950. Em qualquer outra prova seriam as estrelas, mas nesta foram relegados ao papel de banda de abertura para os verdadeiros cabeças de cartaz, a raríssima coleção de vinhos do Porto do século XIX, The Rare Port Collection, que a empresa acaba de lançar. Um trio de vinhos que passaram as últimas décadas adormecidos em velhos cascos de carvalho, e agora despertam para celebrar "os valores de Liberdade, Família e Poesia".
"Foi a liberdade que nos permitiu escolhê-los, a família que nos permitiu cuidar, e é com poesia que agora os partilhamos" entusiasma-se o 14º representante daquele que parece ser a família há mais tempo ligada ao vinho do Porto. E a paixão com que Cristiano se expressa justifica-se, afinal, trata-se de uma trilogia de tawnies muito, muito velhos, de 1860, 1870 e 1888 – os tempos da filoxera – e conseguir juntar três vinhos assim tão antigos numa mesma edição é um acontecimento raro, mesmo para um vinho famoso pela sua longevidade. "Provavelmente irrepetível nas nossas vidas", acrescenta.
Os tawnies são agora lançados numa edição super exclusiva, limitada a 75 unidades, em garrafas escuras, sopradas artesanalmente, o que faz com que nenhuma seja exatamente igual à outra. A embalagem, em madeira lacada em forma de cubo, abre-se como uma montra, revelando não apenas as três garrafas, mas um decanter de cristal Vista Alegre, também ele soprado, e três gargantilhas em prata, para identificar cada um dos vinhos no decanter. Feitas à mão, no mesmo atelier da Leitão e Irmão onde, em tempos, se criaram muitas das peças da coroa portuguesa da qual eram fornecedores oficiais.
O verdadeiro tesouro, no entanto, é o ouro líquido com mais de 100 e 150 anos, e uma concentração de aromas e de sabores como só tanto tempo consegue dar. Notas de mel e de figos, frutos secos, caramelo, e uma frescura e vivacidade mais próprias de um vinho deste século, não do XIX. São vinhos aveludados, cheios de corpo e com finais intermináveis, mas muito diferentes entre si também... O de 1866 terá um toque mais laranja, talvez, o de 1870 mais tabaco, e no de 1888 sentem-se mais as especiarias, mas é tudo um pouco etéreo… a passagem do tempo contribui com algumas características mais misteriosas ou, pelo menos, nada evidentes.
Jancis Robinson, a mais influente crítica de vinhos inglesa, escolheu a expressão "história engarrafada" e não há dúvidas de que são testemunhos vivos de um tempo em que o comboio ou o telefone eram o último grito em tecnologia, e a filoxera destruía as vinhas por toda a Europa, incluindo aqui, no velho Douro. Os van Zeller foram à procura de acontecimentos que enquadrassem cada um dos anos e, "já agora, com referências que fossem positivas", acrescenta Cristiano. "Não queríamos a morte de uma tia ou o início de uma guerra". Encontraram então "o casamento dos meus trisavós, Cristiano e Carlota, em 1870. Dele herdei o nome e deles descende não só este ramo da família, mas também os Guedes da Aveleda, e os Guedes da Sogrape". 1888 foi "talvez o ano mais fácil", foi o ano de nascimento de Fernando Pessoa, por isso "não quis saber de nenhum outro facto nesse ano, porque a poesia é fundamental em tudo o que fazemos na enologia." E se procurasse teria descoberto um par de coisas bem menos positivas, como Jack, o Estripador aterrorizando Londres ou Van Gogh a cortar a orelha.
1860, finalmente, acabou também por não ser complicado, já que foi o ano da eleição de Abraham Lincoln, embora só venha a tomar posse no ano seguinte. "Estes valores de liberdade, família e poesia são fundamentais em tudo o que fazemos, pelo que calhou muito bem termos encontrado estas referências" que deram origem, por sua vez, ao nome oficial de cada um dos vinhos: Crafted by Liberty, Crafted by Family e Crafted by Poetry.
Mestre e guardião
A baronesa Philippine de Rothschild, em Bordéus, gostava de afirmar que "fazer vinhos é bastante simples… só os primeiros 200 anos é que são difíceis", mas tivesse ela – e a sua família – uma história tão longa como a destes van Zeller, e talvez pensasse diferente. São quatrocentos anos de altos e baixos, da criação de vinhos míticos como o Noval de 1931 e perdas como as da Quinta de Roriz e da própria Quinta do Noval nos anos 1990. Foi depois desses anos conturbados que a Van Zellers & Co chegou às mãos de Cristiano e de uma forma algo sui generis, porque a recebeu de presente de Natal de um tio, em 2006. Na altura apenas do registo comercial, que data de 1780, embora os arquivos da família permitam recuar até 1620. Desde então dedica-se à sua recuperação, apostando nos vinhos do Porto Vintage e nos DOC Douro premium, como o CV, mas também em experiências fora da caixa, geralmente desenhadas pela filha Francisca, como foi o caso do primeiro vinho do Porto a estagiar numa adega submarina. Uma estreia com mais de 100 garrafas, todas vendidas a mil euros cada.
Mas a grande aposta são mesmo estes vinhos velhos e muito velhos que vai conseguindo encontrar nos leilões da Casa do Douro, quando os há, e graças às suas extensas relações e conhecimentos forjados em mais de quarenta anos no terreno. "Há muitas coisas que se perdem e é preciso arte para reconhecer o potencial destes velhos barris" diz, porque muitos precisaram de ser "recuperados".
Não foi o caso destes três vinhos, guardados em condições ideais por uma velha família do Douro que prefere manter o anonimato. Eram "um namoro antigo", e sendo certo que vão continuar a surgir vinhos do Porto tão antigos e mais até, conseguir juntar esta trilogia é uma excelente forma de celebrar esta extraordinária herança que os mais antigos nos legaram, e salientar ao mesmo tempo a qualidade e a sofisticação dos vinhos de coleção portugueses, que se podem e devem bater com qualquer outro, a nível mundial.
Cristiano van Zeller: o regresso de uma história com 400 anos
As convulsões europeias do século XVII empurraram a família van Zeller para Portugal em 1620. Durante séculos, as casas burguesas do Porto e as quintas no Douro cruzaram famílias e nacionalidades. A história ainda vai a meio.
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