Em pleno centro histórico de Vila do Conde, numa colina sobranceira à foz do Rio Ave, é impossível ficar indiferente àquele enorme edifício, que pela escala e beleza da arquitetura domina a paisagem desde vários ângulos. D. Afonso Sanches haveria de ficar orgulhoso ao ver que, passados mais de sete séculos, o seu sonho permanece tão sólido quanto sempre o desejou, muito embora nem sempre imutável, pois do projeto iniciado em 1318 pelo filho bastardo do rei D. Dinis e sua mulher, D. Teresa Martins de Meneses, com o intuito de recolher mulheres nobres caídas em desgraça, já pouco mais resta que a não menos impressionante igreja gótica.
Além da ala manuelina, construída ainda no século XVI por iniciativa de D. Isabel de Castro e D. Catarina de Lima, é o corpo neoclássico, construído em 1777 segundo o projeto do arquiteto Henrique Ventura Lobo, figura de proa do denominado neoclássico portuense, que torna único este edifício, onde desde há cerca de um ano funciona The Lince Santa Clara, "um hotel contemporâneo com um passado fascinante", tal como se apresenta aos hóspedes. Ou seja, o projeto de recuperação, a cargo do Atelier Carvalho Araújo, não se limitou a colocar em destaque a arquitetura notável, preferindo antes colocá-la em diálogo com o conforto e sofisticação que se espera de um hotel de cinco estrelas do século XXI.
Um trabalho feito quase de raiz, até porque depois da morte da última freira que ali habitou, em 1893, o edifício passou a funcionar como prisão, tendo tido, ao longo do século XX, muitos outros usos que aceleraram a sua degradação, até chegar ao estado de abandono. No exterior permanecem as imponentes fachadas e o topo do edifício continua ornamentado por enormes tochas de pedra, que podem ser apreciadas em pormenor desde os quartos situados na mansarda. Os interiores, apesar da sobriedade que a história impõe, são elegantes e arrojados QB, num equilíbrio nem sempre fácil de obter, mas que o gabinete Vilaça Interiores, responsável pela decoração, conseguiu na perfeição, como se constata, por exemplo, no acolhedor bar de cocktails Abadessa, situado no antigo refeitório, onde permanece o púlpito dos sermões de antigamente.
Ao todo são 87 quartos e suítes, que se encontram distribuídos ao longo dos enormes corredores. Os mais espetaculares serão porventura os da mansarda, onde pernoitámos, mais em concreto na Suíte Camilo Branco, equipado com duas janelas Velux, que, quando abertas, prolongam a habitação telhado afora, permitindo uma vista panorâmica sobre a foz do Ave, o casario dos centro histórico e, mais além, o próprio oceano Atlântico. O edifício pode ser visitado, mediante marcação, e tem diversos espaços abertos a clientes que não sejam hóspedes, como é o caso do Aqueduto Wellness & Spa, um espaço inspirado na sabedoria e nas práticas das Clarissas de silêncio e contemplação, equipado com piscina interior, sauna, jacúzi e banho turco, entre outros tratamentos da gama Sisley Paris.
Os outros são os restaurantes Mosteiro e Oculto, duas propostas bastante diferentes, mas que de certa forma se complementam entre si. O primeiro tem à frente Júlia Oliveira, nome lendário da cozinha nortenha, que aposta num receituário mais tradicional, como cabrito assado no forno, polvo à lagareiro ou simplesmente peixe fresco grelhado, não fosse esta uma famosa terra de pescadores. Já o Oculto está instalado num "piso secreto", revelado apenas durante as escavações feitas durante as obras, e recebeu recentemente a sua primeira estrela Michelin. A carta é assinada em uníssono pelos chefs Vítor Matos e Hugo Rocha, e disponibiliza dois menus de degustação ligados ao mundo marinho e aos produtos sazonais: Flora (5 momentos, vegetariano) e Imersão (com opção de 5 ou 8 momentos).
Nas cartas de ambos os restaurantes, bem como noutros espaços do hotel, podem ver-se algumas ilustrações, com a linguagem gestual secreta criada pelas monjas clarissas, para contornar o voto de silêncio a que estavam obrigadas. Hoje, já não é necessário permanecer em silêncio quando se cruzam estas portas, mas apetece – e até sabe bem.