‘The Fabelmans’. Steven Spielberg a gostar dele próprio
Não é que o resto do mundo não goste também do realizador. Como não gostar de quem realizou Tubarão, Os Salteadores da Arca Perdida, ou Apanha-me Se Puderes? A questão é que agora é o próprio a autocontemplar-se - o que é perfeitamente legítimo.
O mundo parece rendido, abre-se um site de Cinema e as reações parecem unânimes: "Steven Spielberg realizou o seu melhor filme dos últimos [inserir número à medida da hipérbole e do entusiasmo do autor] anos", "uma obra-prima", "uma declaração de amor ao Cinema e à família".
A parte da "declaração de amor ao Cinema e à família" parece não ter debate possível: The Fabelmans é um coming-of-age movie em que Spielberg olha para si mesmo desde o primeiro contacto que tem com o Cinema até ao momento em que, contra nenhuma expetativa whatsoever, acaba por entrar oficialmente nesse maravilhoso mundo da película em movimento. Isto não é propriamente spoiler, uma vez que os mais atentos saberão que Steven Spielberg viria a tornar-se mais tarde um dos mais profícuos e bem-sucedidos realizadores da Sétima Arte, sendo hoje um dos maiores nomes da história de Hollywood.

O lendário realizador ensaia em The Fabelmans uma série de truques de sábio, daqueles que asseguram que um filme será acolhido exatamente como se pretende - e começa logo pelo prólogo: uma declaração, olhos nos olhos, do próprio dizendo à sua audiência (explicando, por um lado, advertindo, por outro) que aquilo que se segue é "uma carta de amor à sua família", e pronto, é certo e seguro que toda a gente (eu incluído) que escrever sobre o assunto não terá como contornar essa evidência, já que é uma espécie de alínea contratual: "Atenção, que isto que vocês vão ver é o meu filme mais pessoal, portanto tenham isso em conta." Termina esse prólogo com um sentido agradecimento a quem aceitou o desafio de ir ao Cinema - a uma sala de Cinema - ver o filme, contemplar a magia e sentir o ambiente único de um anfiteatro onde se projetam imagens e se comem pipocas. Não há como discordar de que aquele é e continuará a ser o melhor dos sítios para se ver um filme e se sentir a magia dos filmes, e tudo isto apesar das pipocas.

Em The Fabelmans, Spielberg concebe um retrato envolvente e, ao mesmo tempo, contemplativo e analítico do seu crescimento, do seu ambiente, da sua educação judaica e das várias mudanças ao longo da vida. No centro de uma narrativa composta por quadros, como se a cronologia se construísse em capítulos bem definidos, está a relação dos pais e, paralela a esta, a relação do próprio Steven - no filme, Sam (não Sammy: Sam) Fableman - com o Cinema, cuja magia descobre quando é levado a assistir, com apenas 6 anos, a O Maior Espetáculo da Terra, de Cecil B. DeMille. A cena em que o comboio abalroa o carro e, em seguida, choca com uma composição parada na linha acaba por ser determinante para a obsessão do pequeno Sam - que começa por focar-se nos acidentes de comboios e que depois é transposta para a incrível possibilidade de gravar e repetir o que acontece.

O fascínio pelo recurso a dispositivos capazes de registar imagens e de as repetir criando a ilusão do movimento nasce daí. O pai de Sam (Burt Fabelman, interpretado por Paul Dano), um engenheiro eletrónico que trabalha em computação e no desenvolvimento de computadores, explica ao filho, com detalhe técnico, exatamente como ocorre essa ilusão. A forma como o pai de Spielberg é retratado no filme encerra várias dimensões: se, por um lado, é a metáfora da América progressista de meados do século XX - ele desenvolve computadores, ele antecipa o futuro, ele contribui para esse futuro -, por outro é o estereótipo do pai conservador para quem as artes só podem ser um passatempo, um hobby, nunca uma profissão.

Esta postura conservadora atribuída à figura do pai cria um conflito com o filho, Sam/Spielberg, e cava um fosso, que vai crescendo, entre Burt e Mitzy (Michelle Williams), a mulher e mãe dos seus filhos, que tem espírito de artista. Mitzy é pianista e tem uma postura perante a vida completamente diferente do pragmatismo objetivo e técnico, em que tudo tem uma explicação e uma razão, uma causa e um efeito, que caracteriza o marido Burt. Para deixar bem claro que se tratam de espíritos diferentes, o realizador recorre, uma vez mais, a um truque maduro - SPOILER ALERT: perante um tornado que surge a determinada altura, Mitzy decide pegar em três dos quatro filhos (deixa para trás apenas a mais nova) e conduzir até ao meio da tempestade. Que desmiolada, esta Mitzy.

No meio de tudo isto, ou em paralelo, ou cruzado, dependendo da perspetiva e do momento do filme em que nos encontremos, há Bennie Loewy (um Seth Rogen entre o piloto automático e a contenção que lhe tira toda a graça), o amigo da família, colega de Burt desde os primeiros trabalhos, que é uma espécie de tio emprestado de Sam Fabelman.

É neste ambiente, e ao longo das várias fases da família Fabelman - fases que são determinadas pela evolução da carreira do pai Burt, que uma vez mais reflete o próprio desenvolvimento tecnológico americano -, que Sam/Spielberg vai filmando a sua adolescência desde muito cedo e, mais tarde, pequenos filmes de ficção escritos e realizados pelo próprio. A passagem por Phoenix, Arizona, e a mudança para a Califórnia (ambas verídicas) são retratadas em home movies, ao mesmo tempo que o pequeno Sam vai realizando as suas ficções, inspiradas, por exemplo, nas películas de John Ford.

O mais interessante nestas passagens e nestes elementos é que, sim, de facto, são mesmo autobiográficos - e, neste ponto, Steven Spielberg parece escrever, também, uma carta a si mesmo. Talvez uma carta a dar a si próprio os parabéns por ser tão brilhante e desde tão cedo. Os prémios que ganhou, ainda jovem, com os filmes que realizou de câmara na mão - terá realizado 15 a 20 filmes, no total, no registo mais independente que se possa imaginar -, são cristalizados e imortalizados em The Fabelmans, num exercício que tem tanto de legítimo quanto de autocongratulante.

Tudo visto, tudo somado e tudo contado, estamos perante uma obra que deixa sentimentos mistos. O que tem de interessante, o olhar cândido do próprio sobre os primórdios do seu percurso e as suas origens, acaba por ser, a espaços, beliscado pelo excesso de consciência cinematográfica - ok, talvez isso não seja, em si, um pecadilho, mas parece tirar genuinidade à história. Talvez o horizonte devesse ter sido corrigido mais cedo - e esta não pode ser explicada para não estragar a experiência a quem for ver ao Cinema (vão: ir ao Cinema valerá sempre a pena).
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