Conversas

Pode um vinho de 7.500 euros ser barato? Depende do que estiver no interior

A narrativa do vinho Czar de Fortunato Garcia não cabe na garrafa que custa 7.500 euros. Confunde-se com a história da Ilha do Pico, com pragas, adversidades, baleeiros, caves descobertas por bolcheviques e epopeias de sobrevivência e resistência.

Foto: DR
19 de dezembro de 2023 | Augusto Freitas de Sousa

Fortunato não deixa cair uma memória coletiva materializada na sua própria família. A um homem do Pico, basta a sua palavra. Lançou agora um vinho de 1999 que designa por o último Czar do século XX, o derradeiro do seu pai José Duarte, feito à moda antiga. Com uvas da Criação Velha, paisagem Património da Humanidade, o Czar atinge naturalmente, sem adições, os 18 graus ou mais ­– o único no mundo que se conheça.

Fortunato Garcia é a história viva. Da promessa do pai ao seu próprio sonho. Um picaroto de gema?

Nasci em 66 em São Roque do Pico, porque os meus pais quiseram que eu nascesse naquele que já era um centro de saúde na altura. Mas os meus primeiros dois anos de vida vivi em São João do Pico.

Os seus pais eram ambos professores?

Os dois. Desde muito pequenino que tudo girava sempre à volta da escola, quer com a minha mãe, quer com o meu pai. Os meus avós, conheci quase todos. A minha avó materna morreu com 99 anos, portanto essa lembro-me perfeitamente bem dela.

"Era uma vinha de três hectares, a segunda maior vinha da Criação Velha" Foto: DR

O seu avô tinha uma empresa de baleeiros.

O meu avô paterno. Depois das grandes pragas em que a viticultura esteve em dificuldade, ele e os irmãos reuniram-se e abriram uma fábrica para transformação dos cachalotes em óleo. O meu avô era baleeiro, um dos fundadores de uma das primeiras fábricas do Cais do Pico. Mais tarde, reuniram-se as três fábricas que existiam e construíram uma, as "Armações Reunidas", que hoje se transformou num museu.

Tinha memórias desses tempos? Das baleias e da vinha?

A minha casa ficava a menos de um quilómetro da fábrica da baleia, portanto, [essa memória] sempre fez parte da nossa infância e vida. Quando chegavam os cachalotes, nós, os miúdos, íamos ver. Era quase um ambiente de festa. Ver chegar os gigantes e serem rebocados. Também desde os meus cinco anos que o meu pai me costumava levar para a vinha. A verdade é que vivenciei as duas [memórias] com bastante intensidade.

A chegada das baleias não podia ser um momento um pouco traumático?

Na altura, os turistas eram raros. As pessoas que iam ver este acontecimento nasceram no seio destes eventos, portanto, quando apanhavam um cachalote era uma riqueza extra para as famílias pobres que havia na altura. Nós, miúdos, a ver centenas de peixes aos saltos, um festim autêntico à volta do sangue e dos restos do cachalote que ficavam para trás. Inúmeros tubarões desorientados com tanto sangue, que chegavam quase a ficar em terra. Sim, para nós era uma festa e para os graúdos uma mais-valia.

Para as pessoas que não sabem, da baleia pouco se comia…

A baleia era praticamente toda aproveitada. Os locais é que não comiam, acho que por várias razões. Primeiro, quando os caldeirões estavam no ativo a chaminé da fábrica da baleia deitava fuligem tão escura que, conforme o lado do vento, as senhoras não podiam estender a roupa porque ficava preta. E uma coisa era vir um cachalote que a fábrica conseguia pôr em terra, esquartejar e derreter o óleo. Mas quando vinham três ou quatro apanhados no mesmo dia, o que ficava para último entrava em putrefação e o cheiro era nauseabundo. Como é que alguém podia querer comer uma coisa que cheira tão mal? Mas lembro-me do meu pai ir buscar uns bocadinhos de lombo para nós comermos na adega. Cheguei a provar cachalote e não digo que fosse uma iguaria, mas também não era nada desprezível.

Czar 2014
Czar 2014 Foto: DR

Era um rendimento importante para a família?

A casa dos meus pais foi uma das que a minha avó construiu para cada filho, com a riqueza que vinha dos cachalotes. Na altura não era não era fácil de conseguir, principalmente sendo alguém do campo.

Vivia perto do mar?

A 50 metros. Atravessava a estrada para ir para o mar onde andei toda a minha vida. Havia um pequeno jardim à frente, uma casa de pedra, típica do Pico do século passado. O nosso quintal, na retaguarda, era repartido entre vinhas e um pequeno espaço de terra para uma pequena horta e árvores de fruto. As vinhas eram americanas, porque após as pragas só a Criação Velha é que replantou as castas nobres do Pico, enquanto o resto da ilha tinha híbridos americanos.

Hoje as suas vinhas são na Criação Velha, classificada pela UNESCO como Património da Humanidade. Mas nessa altura, os seus pais não tinham lá nada…

Quando o meu pai veio para o Pico em 1960 ficou a dar aulas na Criação Velha e o professor José Rodrigues viu o interesse do meu pai na cultura da vinha e nos vinhos. Um dia decide que gostava de oferecer as suas vinhas porque nenhum dos filhos dele iria continuar a produzir este tipo de vinho que antigamente era chamado o "vinho passado do Pico". Estava praticamente em vias de desaparecer, porque a maior parte das pessoas da Criação Velha estava a retirar a casta mãe, Verdelho, para enxertar um dos filhos, o Arinto dos Açores, muito mais resistente e mais produtivo. E, na altura, como o vinho era vendido ao litro, até percebo, nos anos 40 e 50 as pessoas quererem algo que produzisse muito mais para terem outros rendimentos. Após as grandes pragas em 1852 e depois 1870, a riqueza que esta ilha teve durante vários séculos praticamente desapareceu, e então a vida no Pico tornou-se um pouco mais difícil. Em vez de fazer 1000 litros, fazer 2000 era uma diferença enorme nos rendimentos para as famílias.

Mas o teu pai, creio, não aceitou essa doação…

Na mente do meu pai, aceitar uma oferta dessas iria [significar] estar em dívida para com o professor José Rodrigues o resto da vida e então comprou a vinha pelo ordenado de professor dele, nos anos 60, que eram 1000 escudos, na altura muito dinheiro. O meu pai teve de prometer que iria continuar a fazer este vinho, e daí estas minhas homenagens, porque é devido a esta resiliência que hoje existe Czar.

Czar 1999 - O último Czar do séc. XX - garrafa protótipo com rótulo provisório em aprovação na CVR Açores
Czar 1999 - O último Czar do séc. XX - garrafa protótipo com rótulo provisório em aprovação na CVR Açores Foto: DR

Que dimensão tinha o terreno?

Era uma vinha de três hectares, a segunda maior vinha da Criação Velha. Depois dos caminhos feitos, passou de três para dois e, depois da morte do meu pai, comprei mais um hectare e meio.

Ficou o Verdelho, mas tem outras castas?

Mantive sempre aquilo que que existia. Nunca quis cortar nada das vinhas centenárias. Maioritariamente há o Verdelho e o Arinto dos Açores que está mais junto ao mar. E também o Terrantez do Pico, mesmo sendo uma casta muito difícil, complicada e pouco produtiva. Para o meu vinho, mais ou menos 65% é Verdelho centenário.

Regressamos à sua escola. Saiu do Pico com 15 anos?

Já se conseguia estudar no Pico até ao nono ano, mas tive de ir para a Horta continuar o secundário.

Como fazia? Ia e vinha de barco todos os dias?

Em três anos que estudei na Horta, nunca lá passei um fim de semana, mas durante a semana tínhamos de alugar casa até porque os barcos não se coadunavam com os horários escolares.

Estava com os seus irmãos?

Tenho dois, mas são mais velhos. Estava com duas pessoas do Pico também a estudar na Horta. O meu irmão vive em San Diego na Califórnia e a mais velha vive no Pico e também é professora.

Tinha uma ideia do que que queria fazer?

Com 15 anos, a minha paixão era andar no mar todos os dias, mas incutido por dois pais, professores, que era importante dar seguimento aos estudos, fui, mas com poucos objetivos traçados. No final do secundário virei-me para a biologia marinha, mas o grande problema é que eu sou um aselha a química e a coisa não correu bem. Mudei de curso para ser também professor.

Fortunato Garcia e Czar
Fortunato Garcia e Czar Foto: DR

O que fazia no mar? Brincadeiras, pescarias?

Desde pequenino que o pai nos começou a levar, a mim e ao meu irmão, para a pesca. Sempre tivemos uma pequena lancha, e por isso, nunca tivemos de comprar peixe. Mais tarde, comecei a mergulhar e o meu pai comprou-me uma arma de caça submarina. Portanto, a nossa vida esteve sempre ligada ao mar e àquela adega, com inúmeros almoços e jantares com peixe que nós apanhávamos. Costumo dizer que houve uma parte da minha vida em que estive mais tempo dentro de água do que fora dela. Não é bem assim, mas a verdade é que lá passei muito tempo.

A certa altura quis sair do Pico.

Lembrei-me que havia de fazer um ano sabático e fui atrás do meu irmão, que tinha acabado de emigrar para a Califórnia. Estive lá seis meses e um dia virei-me para o meu irmão e disse: "Ó Zé, eu acho que a minha América vai ser o Pico. Vou-me embora". Era uma cidade que me cativou de tal forma que quase me conseguiu fazer ficar, mas não conseguiu. E ainda bem que voltei. Depois finalizei esse exame de biologia e fui para a universidade de Aveiro. No final do primeiro semestre, principalmente pela química, a coisa não estava a correr nada bem e desisti.

E Lisboa ou Porto nunca estiveram nos seus planos?

Nunca. Acho que posso ser considerado um ilhéu de gema. Pescar e fazer mergulho no mar, que até me levou a tirar um curso de mergulhador profissional. Caçar no Pico. Sempre tive bandas e correu extremamente bem. Já toquei praticamente nas ilhas todas dos Açores e também no estrangeiro e, portanto, tudo o que eu gostava de fazer estava nesta ilha. Importava-me era ser feliz e fazer as coisas que mais gostava de fazer.

O que é que caçava?

A preferida sempre foi a galinhola. Ainda cheguei a caçar perdizes, atualmente proibido. Sempre tivemos muitos coelhos, cabras e ovelhas selvagens. Havia uma quantidade de caça grande e agora, imagine-se, com a caça e o peixe, tudo era uma desculpa para ir para a adega e andar em festa quase constantemente. Explique-me qual era a Lisboa que me conseguia tirar daqui?

"Tudo o que eu gostava de fazer estava nesta ilha" Foto: DR

Começou a dar aulas no Pico?

Em 86, aulas de educação física. Sempre joguei futebol e vários desportos, além de andar no mar. Fui colocado sem habilitação própria, mas também na altura havia falta de professores, a dar aulas nas Lajes. Em março de 87 tive de abandonar o ensino e fui para a tropa em Mafra. Quando saí da tropa dei aulas de matemática e, no ano a seguir, fui lecionar trabalhos oficinais para São Roque. Com o passar do tempo - e começava a haver muita gente formada -, percebi que também tinha de tirar um canudo. Como até achava que era um bom professor, que conseguia cativar os miúdos, finalizei a licenciatura em Educação Tecnológica no ano 2000. Fiquei no quadro da escola nas Lages do Pico.

Essa banda que falou como era?

Comecei com 15 anos com meu irmão nos Pedras Negras, uma banda que se iniciou em 1970. Depois vou para outra, o Açor e depois sou ‘caçado’ para aquela formação onde permaneci mais tempo e que na altura era considerada como o top no Pico: os Ilhéus. Foram mais de 30 anos. Entretanto, como não queria perder o contacto com a música criei uma banda em 2009 que ainda perdura. Os Vira a Lomba onde canto e toco guitarra.

Com a morte do seu pai em 2007 sabia que tinha de assumir a adega e o vinho?

Queria atingir os meus objetivos. Penso sempre na velha história: quando o meu pai me dizia que temos o melhor vinho do mundo e eu respondia que o mundo não o conhece. Queria que o Czar estivesse nas mesas premium, tal como os vinhos passados do Pico eram vinhos de reis, imperadores e czares.

O nome Czar foi o seu pai que imaginou?

Segundo ele contava, leu um dia que na revolução bolchevique de 1917, quando entraram no palácio do último Czar, Nicolau II, encontraram vinho passado do Pico nas caves. Ele achou que seria um nome ideal, o que também concordo.

Como foram os primeiros passos?

A primeira coisa foi dar o Czar a provar. Comecei pelas feiras açorianas e depois em Lisboa. E a minha primeira internacional aconteceu em Moscovo.

"Explique-me qual era a Lisboa que me conseguia tirar daqui?" Foto: DR

O que recorda dessa feira na Rússia?

Em 2011 havia uma dificuldade grande para os russos falarem inglês e eu não tinha tradutores. Sabia que os czares tinham sido os maiores importadores de vinho passado do Pico, de meados do século XVIII até meio do século XIX, mas foi difícil explicar. No último dia da feira, apareceu-me o próprio sommelier do evento, que provou o meu czar, o de 2006, e disse ‘Oh Meu Deus, tu tens de deixar isto para o concurso’. Deixei duas garrafas e passados 15 dias recebi um e-mail. Dos 5000 vinhos presentes, 25 ganharam uma medalha de ouro e o Czar 2006 foi um deles. Aproveitei para divulgar nos jornais locais e na RTP Açores. Devia ter 400 garrafas de 2006 e, numa semana, fiquei sem vinho. Pensei que se arranjasse gente para provar e escrever talvez um dia chegasse a algum lado.

Quando é que o vinho atingiu os 500 euros?

Em 2022, o vinho da colheita de 2013. Foi o primeiro Czar com oito anos de barricas. Quando o jornalista João Paulo Martins provou o de 2013 disse-me que não podia vender aquele vinho àquele preço. Perguntou porque não mudava a garrafa e pedia 500 euros. Disse que já tinha provado centenas de vinhos incríveis no mundo, que punha aquele vinho ao pé de qualquer vinho do mundo e não passaria vergonhas.

Os preços eram baixos?

Desde os anos 60 até 2022 foi uma adega que nunca deu lucro, foi de resiliência, de teimosia, de uma promessa do meu pai e de um sonho meu. Mas pensei que um dia, o meu vinho que é do meu pai, ia ser reconhecido como premium e haveria gente para dar dinheiro por ele.

Quem são os seus clientes?

As garrafas de 2013 que vendi em Portugal ultrapassaram a centena, mas como eu tinha 800 para vender, não era sustentável vender apenas no país. O maior número de garrafas que já exportei foi para os Estados Unidos, mas tenho várias garrafas distribuídas pelo centro e norte da Europa, algumas no Sul e também em Hong Kong e Singapura, mas números mais residuais. Mesmo assim, com o Czar a 500 euros, já consegui enviar o vinho de 2013 para 32 países. E só vendo três garrafas por pessoa. Cheguei a ter clientes que me queriam comprar 15 e 20 garrafas e eu recusei, porque na verdade se eu vendia tudo só para um lado, muito menos gente tinha provado este vinho.

Suponho que tem histórias com clientes…

Uma russa veio ao Pico no jato privado do patrão para comprar vinho, porque ele vinha passar três dias a São Miguel, mas queria beber os melhores vinhos da região e, como se sabbe, os melhores vinhos estão no Pico. A senhora ouviu falar do Czar e quis visitar a adega. Na altura, tinha o 2011 e o 2008 que ela provou. Achou o de 2011 gastronómico para acompanhar com carnes e queijos fortes. Mas quando provou o 2008 e quando sugeri uma sobremesa pouco doce ela corta a conversa e diz-me que não queria comida com aquele vinho. Disse que este vinho se bebia com se fosse um livro.

"Disse que este vinho se bebia com se fosse um livro." Foto: DR

E este novo lançamento. Qual é ideia de lançar uma garrafa de 7500 euros?

É o primeiro caso conhecido do mundo de um vinho que naturalmente tenha atingido os 20 graus. A verdade é que também vem da história do meu pai, que me disse um dia: "Fortunato, somos tão pequeninos que nem sabemos pedir grande".

Este é de 1999.

É da barrica que tinha sido a preferida do meu pai, de 1999. Ele não quis fazer lote e guardou-a para beber na adega com a família e os amigos. Tinha colocado o vinho em garrafões e fui ver o que existia e decidi lançar o vinho. É o último Czar do século XX, de 1999 e, historicamente, o século onde o último czar foi assassinado. E só há 86 garrafas o que também diz muito da exclusividade. Também vai ser a última referência dos vinhos do passado, sem nenhuma enologia, sem nenhuma decantação a frio que é a única coisa que eu faço diferente atualmente. Se alguém quiser provar um vinho e ter a ideia do que é que os czares no século XVIII bebiam, é este 1999, porque não há mais registos e vinhos destes em lado algum.

Já há garrafas vendidas?

Seis. Quem fizer a pré-compra, vai ter direito a ter o nome gravado a ouro e um desconto de 1000 euros.

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