Opinião

Rescaldo eleitoral: chega de chamar fascistas a torto e a direito

O partido de André Ventura conseguiu um resultado estrondoso nas eleições de domingo. As reações, à esquerda e ao centro do espectro político, vão-se dividindo, mas há uma que sobressai: a acusação aos votantes do Chega, chamando-lhes fascistas. E isso é tão pouco inteligente.

Foto: Getty Images
11 de março de 2024 | Diogo Xavier

Até tenho amigos que são. Hoje, e depois de contados mais de um milhão de votos no Chega, é virtualmente impossível para um português não ter amigos que sejam. O chavão, "até tenho amigos que são", tantas vezes usado na antecâmara de um "mas" reacionário ou para tentar suavizar uma ideia troglodita, normalmente acerca da etnia ou da orientação sexual de alguém, passa a partir de hoje a poder ser aplicada para descrever aqueles que, a 10 de março de 2024, no ano em que se comemoram os 50 anos do 25 de Abril e do derrube de uma ditadura de extrema-direita, decidiram votar num partido que é uma caricatura de partido, com um líder que repete, gritando muito alto, até à exaustão, que vai "acabar com a corrupção".

Enfim, sobre o que é o Chega, de André Ventura (uma vírgula faz tanta diferença), não há muito mais que possa ser acrescentado ao que foi dito até agora, ao longo dos últimos anos, por especialistas, comentadores, analistas, jornalistas e até sociólogos. Por outro lado, haverá muito para dizer acerca de quem votou no Chega. E é importante que tenhamos a consciência límpida e a clarividência para, diante da evidência de termos amigos, ou primos, ou pais, ou mães, ou tios, ou avós que votaram em Ventura, não desatarmos a chamar "fascista!" a tudo quanto mexe. Se há uma fatia relevante dos eleitores de André Ventura que se revê num ideário racista, xenófobo e nacionalista, haverá certamente muita gente boa entre esse milhão de pessoas. Neste momento-charneira da democracia portuguesa, talvez não seja inteligente pôr de parte deliberadamente um décimo da população do País. Será provavelmente muito mais útil e acertado chamar para junto de nós muitos desses insatisfeitos que, sem outras saídas, optaram por votar no Chega para mostrarem o seu desagrado para com um sistema que os vem negligenciando há décadas, e dizer-lhes e mostrar-lhes que estamos todos juntos nesta aventura de tentar construir um país mais justo, mais sólido e mais equilibrado.

No rescaldo dos resultados eleitorais, ouvi Ana Gomes analisar, com perspicácia, a inimaginável vitória do Chega no distrito de Faro. Ana Gomes concentrava-se, por exemplo, na questão da água, uma água que no distrito é racionada para irrigar laranjais, mas que continua a encher piscinas e a regar campos de golfe. E este assunto, de importância extrema para a população algarvia, nunca foi, que eu tenha visto, debatido abertamente e com a urgência que merece pela classe política convencional, da esquerda à direita. Se o Chega fará alguma coisa quanto ao assunto? Claro que não. Mas o que importa aqui é o significado, o protesto desta votação massiva contra um sistema democrático que negligenciou, uma vez mais, uma população não-urbana.

Em simultâneo, vamos assistindo ao Alentejo profundo a ficar órfão de uma esquerda cada vez mais aburguesada e mais urbana, completamente afastada do chamado "país real" - uma esquerda que perde mais tempo a debater uma ciclovia numa avenida lisboeta do que a tentar decifrar por que razão o azeite está tão caro, numa época em que há, no Baixo Alentejo, cada vez mais olival e com cultivo super-intensivo (e a que custo ambiental? E com que consequências para a saúde das populações?). Uma esquerda que, em relação à questão dos imigrantes que trabalham nesses mesmos olivais ou noutros tipos de cultivo intensivo, evita o assunto, contorna-o, ignorando que há ali um problema grave de exploração e de desrespeito pelos Direitos Humanos - e que isso tem consequências para todas as comunidades envolvidas.

A lista podia continuar. O País fora dos grandes centros urbanos parece não ter importância para a classe política. E é neste contexto que André Ventura vem crescendo com grande facilidade. O discurso de Ventura é fácil, é preguiçoso e é pegajoso. E há muito quem, já farto de ouvir os discursos dos outros, tenha ouvido este e pensado "olha, que se lixe". Está certo? Claro que não está. É também uma atitude preguiçosa? Sim, muito provavelmente. Mas quando as pessoas se sentem abandonadas, ultrajadas e desrespeitadas, é normal que reajam e se queiram fazer ouvir. Desta vez, disseram "nós também existimos e estamos aqui". E desta vez ouviu-se.

No meio de tudo isto, também se ouviu a voz de Pedro Nuno Santos. Na hora da derrota, foi um bálsamo assistir a um líder do PS convicto, seguro de si e, acima de tudo, otimista. O secretário-geral do Partido Socialista parece ter decifrado a mensagem. Pelo menos, as palavras que dirigiu aos votantes que o PS, com as suas consecutivas gestões danosas, foi alienando são de conforto e de procura pela reconciliação. Em vez de entrar em pânico ou de alinhar em discursos catastrofistas anunciando um fascista em cada esquina, Pedro Nuno Santos, lúcido e sereno, preferiu dizer que é tempo de ouvir e de dar atenção. Porque, afinal, muitos daqueles que votaram no Chega não são diferentes de todos os outros - são apenas pessoas a querer viver a sua vida. Todos temos amigos que são. Se podemos legitimamente questionar-lhes o gesto, a escolha e o voto de contestação, será muito errado etiquetá-los a todos como se os excomungássemos. Mais vale que conversemos.

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