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Isto Lembra-me Uma História: O chamamento de Deus que cala a música

Chegam de Porto Rico boas e más notícias: há menos um músico de Reggaetón no mundo. As notícias são boas para quem detesta o género e más para quem aprecia o Daddy Yankee.

Foto: Getty Images
10 de dezembro de 2023 | Diogo Xavier

"Zúmbale mambo pa' que mis gata' prendan los motore'"; repete: "Zúmbale mambo pa' que mis gata' prendan los motore'"; só mais uma vez: "Zúmbale mambo pa' que mis gata' prendan los motore'" - quem entende de Reggaetón sabe perfeitamente onde é que isto vai dar. Eventualmente, no meio dos elogios rasgados e nem sempre perceptíveis às qualidades da "gata", Daddy Yankee vai revelar ao mundo que a ella le gusta la gasolina, ao que a "gata" responderá pedindo que Daddy lhe dês má gasolina.

Não sou nenhum especialista na interpretação de textos e sinto até dificuldades em transpor para leitura legível certas metáforas e outras figuras de estilo construídas sobre calão muito específico - no caso, calão porto-riquenho, recheado de referências que inevitavelmente me escapam. Nunca saberei ao certo o que significa "zúmbale mambo" nem posso ter certezas absolutas acerca do conteúdo da "gasolina", mas escutada com atenção a música atrevo-me a arriscar que estamos falar ou de carros ou de sexo, possivelmente de ambos, e ainda, quem sabe, de droga. Por mim, tudo bem, desde que ninguém se aleije, prendán los motore, como canta Yankee.

Recordo esta triunfal entrada de canção do músico de Porto Rico com um misto de tristeza e de surpresa: Ramón Luís Ayala Rodríguez anunciou recentemente ao mundo que vai deixar o Reggaetón, que vai abandonar a música, os circuitos, vai deixar o próprio estrelato e tudo o que lhe está associado. Vai, portanto, deixar de ser Daddy Yankee. Porquê? Porque pretende entregar-se a Cristo. Não é exagero. Foi precisamente antes de uma interpretação exagerada e extravagante, em caso, no Coliseu de Porto Rico, diante de 18 mil pessoas, que Daddy Yankee anunciou a sua retirada. No discurso, necessariamente emotivo e emocionado - debaixo dos óculos escuros, corriam-lhe lágrimas de tristeza pelo rosto -, Ramón Luís perguntava ao seu séquito - quiçá, a si mesmo e possivelmente ao próprio Deus - "de que vale a um homem conquistar o mundo inteiro se, contudo, não consegue salvar a sua alma?" Dá que pensar.

Quando Daddy Yankee falou em "conquistar o mundo", não se tratava de hipérbole, não há aqui qualquer tipo de exagero. Yankee ganhou seis Grammy Latinos, foi o autor de Gasolina, o mega hiper hit que pôr o Reggaetón no mapa - e de que maneira: o estilo tem sido dos que mais venderam na música Pop em todo o mundo no século XXI - e ainda se deu ao luxo de ser co-autor e co-protagonista de outro hiper super mega hit, Despacito, Luis Fonsi, que o considerou, numa também emocionada e emotiva mensagem de despedida, "o GOAT" - para quem não está familiarizado com a terminologia, trata-se de um acrónima a partir das iniciais da expressão Greatest Of All Time, o Maior de Sempre.

Ramón Luís não foi indiferente a tudo o que se disse, escreveu e pensou acerca do seu inegável e imensurável talento, mas um homem chega a uma altura em que, se tiver Jesus dentro de si, tem de dizer "trago Jesus dentro de mim". Se Ramón Luís bem o tinha, Ramón Luís melhor o disse: tem mesmo. Parou por aqui, a vida dele segue agora outro caminho.

Não é caso único, nem sequer pioneiro, este de Daddy Yankee. Se outros músicos depois da descoberta inexorável da fé optaram por mudar de música para evitarem mudar de vida, de Roberto Carlos a Cat Stevens, que se tornou Yusuf Islam, outros há que mudaram tudo, mas mesmo tudo, e que abdicaram também da música, do estatuto e de tudo o que lhes estava associado da maneira mais despojada de todas depois de encontrarem na fé a salvação. E os casos estão, por vezes, mais próximos de nós do que podemos pensar.

"As costas não me doem muito, eu acho que o Doutor deu-me drunfos", cantava Allen. "Eu gostei de ti desde o começo / Endividei-me com o teu preço /Um dia encontrei o meu amor-veneno / A velha inimiga do nosso tempo." Mesmo não sendo especialista na interpretação de textos, mesmo não passando de um leigo no que toca à lírica hip hop suburbana da Grande Lisboa, não fica difícil deduzir que estamos a falar de droga. Mais: falamos de droga como beco sem saída, por um lado; droga como alívio - "as costas não me doem muito" -, por outro. E nesta letra, Drunfos (A Árvore Kriminal, 2011), Allen Halloween falava das saídas possíveis diante dele, depois de se ter apaixonado pela "velha inimiga do nosso tempo": "a cova a kuzu ou casar". Escapou à cova e ao casamento, acabou por abraçar a kuzu - uma planta que existe na América do Norte e no Japão, que os japoneses usam com fins medicinais. Só que, no fim de contas, talvez o Doutor lhe tenha dado drunfos.

Capa do disco A Árvore Kriminal, 2011, de Allen Halloween.
Capa do disco A Árvore Kriminal, 2011, de Allen Halloween. Foto: DR

As práticas de medicina alternativa, assim como as opções de vida de Allen Pires Sanhá, têm pouca ou nenhuma importância para o caso. Estes contornos só ganham relevo quando o músico e poeta, ao completar os 40 anos, toma uma decisão - uma decisão que já se arrastava há pelo menos cinco anos: dedicar-se a 100% a Jeová, o que implicava necessariamente deixar a música.

E deixou. Quase 30 anos depois de ter escolhido a própria alcunha - que teve origem num homicídio a que assistiu: um vizinho matou outro com 36 facadas, o que despertou em Allen um retorcido fascínio por facas (disse o próprio numa entrevista ao Observador) -, Allen despediu-se de Halloween para se dedicar a Jeová. Cantavam os Trovante que "Deus leva os que ama". Não importa se são movidos a drunfos ou a gasolina - Ele pode sempre mais.
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