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Isto Lembra-me Uma História: Quando Marcelo encarnou Donald

O Presidente da República vai dando sinais de fadiga institucional e de incoerência cada vez mais frequentes. É normal e até compreensível, que a idade não perdoa e o desgaste acumulado pelas viagens e pelos compromissos vão deixando marca. Contudo, estamos a ver Marcelo cruzar novas fronteiras.

Foto: Getty Images
07 de novembro de 2023 | Diogo Xavier
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Tudo começou com uma estátua. Por vezes, as reações mais bélicas são deflagradas por motivos improváveis - digo isto mesmo sabendo que mexer com símbolos que representam uma ideologia, uma identidade, uma cultura, ou uma comunidade têm sempre um grande potencial para incendiar sensibilidades e fazer estremecer, e às vezes ruir, as fundações do compromisso que todos aceitamos, mesmo sem nos apercebermos, quando vivemos em sociedade, civilizadamente, sem nos ofendermos mutuamente, sem nos agredimos nem nos matarmos uns aos outros. É uma espécie de acordo tácito, assente num princípio de tolerância assumido a priori, que nos faz conviver pacificamente com as diferenças dos outros e que impede que essas diferenças nos causem, primeiro, transtorno e eventualmente agastamento, frustração e ira. Isto não é exagero, nem sempre é fácil conviver com as preferências alheias, mesmo que elas, à partida, não impliquem connosco minimamente.

Uma estátua é uma estátua, mas pode não ser só uma estátua. Tal era o caso desta consagrada à figura e à memória dos feitos de Robert E. Lee, em Charlottesville, Virginia, Estados Unidos da América: montado num cavalo chamado Traveller - adestrado e abedientemente cabisbaixo -, o general da Confederação dos estados do Sul, aqueles que defendiam o esclavagismo, entre outros privilégios do conservadorismo civilizacional (não usarei termos como barbárie nem selvageria, que esses são por norma reservados aos não-cristãos), cavalga direito e orgulhoso.

Em fevereiro de 2017, pesando tudo o que a estátua representava - ou seja, o elogio e a homenagem da comunidade a Robert E. Lee, um general que lutou pela manutenção da escravatura, pela discriminação racial e pela supremacia branca -, e tendo em conta os esforços feitos por todo o Sul por remover monumentos da Confederação na sequência do tiroteio da igreja de Charleston em 2015, uma assembleia votou pela retirada da estátua de Charlottesville. Foi uma votação renhida: três votos a favor da retirada, dois contra.

É importante lembrar que Donald Trump tinha tomado posse como presidente dos Estados Unidos da América em janeiro de 2017, menos de um mês antes da decisão. Viviam-se tempos de discursos extremistas, o ódio racial parecia legitimado pela eleição de um presidente que pode ser adjetivado com uma vasta gama de impropérios, que fazia gala em dividir para reinar e em polarizar opiniões e posições sobre questões que, na verdade, só careciam de pensamento e de debate, em vez de chavões populistas e apelos à honra e às glórias passadas. Naturalmente, no meio de tudo isto, uma nova extrema-direita americana ganhou forma e força, e mesmo a velha extrema-direita americana - sim: o Ku Klux Klan, os neonazis e as milícias supremacistas, por exemplo - saía dos bunkers e dos túneis onde, acobardada e envergonhada, permanecera escondida durante as décadas anteriores.

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Neste contexto, não se estranhou que em maio de 2017 se tivesse realizado uma manifestação noturna contra a remoção da estátua. Mais de 100 pessoas desfilaram pela cidade, marchando com tochas e alguns usando capuzes brancos (!), mostrando ao que vinham: a extrema-direita estava aí para lutar pelos símbolos - e pelas suas ideias supremacistas, e por uma série de detalhes ideológicos sobejamente conhecidos pela maioria das pessoas.

Meses mais tarde, a 11 e 12 de agosto, organizou-se na cidade, com a espantosa e silenciosa anuência das autoridades, o Unite the Right rally, uma manifestação assumidamente supremacista branca (é uma maneira meiguinha de dizer que é desassombradamente racista) de extrema-direita, composta por elementos de grupos tão democráticos como estes que se seguem: neo-confederacionistas, neonazis, nacionalistas brancos, ku klux klan e milícias brancas de extrema-direita. Durante os desfiles foram entoados cânticos antissemitas e racistas; os manifestantes, muitos deles munidos de bandeiras com simbologia nazi e neonazi, e cruzes Deus vult, símbolos antissemitas e anti-islão, traziam consigo e exibiam, em muitos casos, armas - claro, numa manifestação destas, não podia faltar o ingrediente principal da tradição miliciana americana: a riffle.

O ultraje foi prosseguindo com a complacência das autoridades, mas obviamente não sem a reação das pessoas de bom senso, que consideraram que a liberdade de expressão e de manifestação talvez tenha ido longe demais quando aquilo que se apregoa é que se matem umas quantas pessoas só pelo facto de serem negras, ou serem judias, ou serem muçulmanas. Chama-se a isso discurso de ódio, não liberdade de expressão; e é proibido - ou devia ser proibido e punido - por lei, tanto aqui como os Estados Unidos. Ao segundo dia das manifestações do Unite the Right, manifestantes antifa juntaram-se num contra-protesto pacífico - sem ostentarem armas, por exemplo. Houve confrontos. Os manifestantes de extrema-direita não consentiram que outros fossem para a terra que consideram ser deles expressar-se em liberdade e reagiram com a violência que se previa.

No meio do caos, houve ainda um militante neo-nazi que pegou no carro e que avançou deliberadamente por uma rua apinhada de manifestantes antifa que desfilavam entoando palavras de ordem. Atropelou, pelo menos, 36 pessoas. Uma delas, Heather Heyer, morreu. Os outros 35 ficaram feridos, muitos deles com gravidade. O assassino tinha 20 anos e conduziu desde o Ohio para ir impor a sua justiça na Virginia. Foi preso, condenado a várias prisões perpétuas, daquelas que os condenados levam para a cova e continuam a cumprir mesmo depois de enterrados. O crime foi classificado pelas diversas autoridades (FBI, município de Charlottesville, Secretaria de Segurança Pública da Virginia e Procuradoria-Geral dos EUA) como "terrorismo doméstico de extrema-direita".

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Houve, no entanto, um cidadão que discordou veementemente dessa classificação e da maneira como a maioria da comunicação social noticiou o sucedido. Na verdade, terá havido muito mais do que só um cidadão, mas este tinha mais voz do que todos os outros, além de usar com inusitada frequência o então Twitter, hoje X, e já para não falar no detalhe de se tratar do presidente dos Estados Unidos da América: sem surpresas, Donald Trump, ele mesmo.

A frase "I think there is blame on both sides" ("Acho que a culpa é dos dois lados") fez correr tinta e envelheceu muito mal, mas foi assim mesmo que o então presidente americano decidiu fazer o balanço da tragédia que nasceu de uma manifestação supremacista composta por milicianos encapuzados e armados com espingardas, e munidos com tochas. E o que me fez lembrar desta história - refiro-me à avaliação que Trump fez da situação, não aos confrontos em si -, que vai felizmente ficando cada vez mais distante no tempo, foi o episódio recente com Marcelo Rebelo de Sousa - mais um episódio com o mesmo protagonista, portanto -, em que o Presidente da República se dirigiu a um representante da Autoridade Palestiniana para lhe pedir "moderação e espírito democrático", tudo isto durante uma visita ao Bazar Diplomático no Centro de Congressos de Lisboa.

Nabil Abuznaid, o representante da Palestina, respondeu que o país dele atravessa "tempos muito difíceis" e o Presidente português respondeu, com ocidental condescendência e pouco instruída pedagogia, que o desenrolar dos acontecimentos dependeria também do comportamento dos palestinianos. Nota: os palestinianos são aqueles dois milhões de pessoas detidas a céu aberto na faixa de Gaza, que vão sendo deslocadas e desalojadas, enquanto são bombardeados e tentam sobreviver aos ataques de, por exemplo, mísseis das forças israelitas. Marcelo Rebelo de Sousa acrescentou ainda que "desta vez, foi alguém do vosso lado que começou", referindo-se aos ataques cruéis e desumanos do Hamas a 7 de outubro. Não é mentira, é uma evidência, é um facto: o Hamas atacou a 7 de outubro; a retaliação profundamente desproporcional e com contornos de limpeza étnica só começou a acontecer a seguir. As declarações revelam muita falta de noção. Ou, melhor dizendo, revelam uma noção à Donald Trump, o que parece ser ainda mais grave.

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