Juan Carlos de Espanha, amores e contradições em novo livro de diplomata português
No regresso da Democracia a Espanha, encarnou a imagem de uma monarquia moderna e fotogénica. Juan Carlos de Borbón, da infância no exílio dourado do Estoril à queda em desgraça, é o tema do livro do diplomata português José de Bouza Serrano, O Rei Sem Abrigo.
O diplomata português José de Bouza Serrano recorda com nitidez a impressão que lhe causou o rei Juan Carlos quando o conheceu em pessoa há largas décadas: "Foi no Estoril. Era um homem muito alto, com uma aparência notável e eu era um adolescente. Fiquei impressionado", diz-nos. Mais tarde, teve oportunidade de confirmar essa sensação juvenil, quando foi colocado, no seu primeiro posto, como secretário da Embaixada de Portugal em Madrid. Desse contacto regular, ao longo de muitos anos, quer com o rei emérito, que abdicou em 2014 na pessoa do filho, Felipe VI, quer com outros membros da família real espanhola, como as infantas Margarita e Pilar, nasceu o livro Don Juan Carlos I - O Rei Sem Abrigo, acabado de publicar pela Oficina do Livro.
Mas engana-se quem pense que estamos diante de um panegírico deste monarca, que está a viver os últimos anos de vida longe da família e do seu país. Embora não esconda a admiração por algumas posições de Juan Carlos enquanto estadista, nomeadamente na afirmação da Democracia em Espanha, José de Bouza Serrano não deixa de refletir sobre um final de reinado desastroso, em que, como diz, os espanhóis e o mundo foram surpreendidos por um homem ganancioso e egoísta que ainda não conheciam. Como escreve logo na abertura desta obra: "Apesar da sua avidez económica e sexual, que se podem justificar pela solidão e pela falta de afectos na infância, longe do feliz núcleo familiar, e pela alegada escassez de recursos económicos para ombrear com os verdadeiramente ricos deste mundo, espero e estou certo, como reconhece o seu biógrafo Paul Preston, que a História o absolverá."
Comecemos pelo princípio: Era uma vez um príncipe louro, que veio ao mundo na clínica anglo-americana em Roma, a 5 de janeiro de 1938. Recebeu o nome de Juan Carlos Vítor Maria de Borbón y Borbón (entre outros apelidos sonantes) e era neto de Afonso XIII, o monarca deposto pela República espanhola em 1931. Como se lê no livro de Bouza Serrano: "Na véspera, Dona Maria foi ao cinema com o rei Alfonso XIII, a quem ela chamava Uncle King, e teve os sinais de parto no meio do filme, dizendo ao sogro que deviam sair. O conde de Barcelona, Don Juan, estava numa caçada de homens, em La Mandria, pois o médico tinha-lhe dito que fosse descansado, que a criança não nasceria antes de 20 dias." O pequeno príncipe não teve tempo de privar muito tempo com esse avô que acabaria por ser o seu antecessor no trono de Espanha (Afonso XIII morreu três anos depois, com apenas 54 anos), mas a sua infância e primeira juventude, em boa parte passadas na Vila Giralda, no Estoril, proporcionaram-lhe memórias de grande felicidade, como nos diz o autor: "A ligação a Portugal manteve-se forte durante toda a vida. Ele fala perfeitamente Português, como, aliás, as suas irmãs. Foram anos felizes nas vidas deles."
Uma felicidade beliscada, na adolescência, pelas graves divergências entre o pai, D. Juan, Conde de Barcelona, legítimo herdeiro da Coroa, e o General Franco que governava Espanha com mão de ferro. Tudo se desenrola a partir do final da IIª Guerra Mundial, quando, após a vitória das Democracias aliadas, o Conde não oculta que pretende ver Espanha seguir um novo rumo. Como escreveu numa carta aberta aos espanhóis, também conhecida por Manifesto de Lausanne. Diz a propósito José de Bouza Serrano: "Creio que os jovens de hoje não realizam o que significava proferir tais palavras em 1945, que eram clarificadoras para os aliados quanto às intenções do pretendente ao trono, e um violento murro no estomago do vencedor da cruel Guerra Civil espanhola. Rancoroso como era, Franco nunca poderia, depois deste manifesto, restaurar a monarquia na pessoa de Don Juan de Borbón." Doravante, o pequeno Juan Carlos tornar-se-ia o herdeiro da Coroa, com a sua educação a ser tutelada pelo próprio ditador, que, no entanto, fazia saber que a monarquia só seria restaurada após a sua morte.
Mas seria nesse mesmo Estoril em que viveu momentos tão felizes (como o seu idílio de juventude com Maria Gabriela de Sabóia, filha do também exilado rei de Itália, Umberto), que o futuro rei de Espanha conheceria a maior tragédia da sua vida: a morte do irmão mais novo, Alfonsito, de 14 anos, por si atingido com um disparo acidental de pistola, na Quinta-feira Santa de 1956, que calhou a 29 de março. A mãe de ambos recordaria mais tarde: "Eu estava a ler na minha salinha e Juan, ao lado, no seu escritório. De repente, ouvi Juanito, que descia as escadas, dizer à senhorita que então tínhamos: Não! Tenho de ser eu a dizê-lo! Mami, mami! Não precisei de ouvir mais. Percebi tudo. A mim parou-se-me a vida." Como nos diz José de Bouza Serrano: "Deve ter sido tremendo tudo aquilo, com o Conde de Barcelona a exigir ao filho que lhe jurasse, de joelhos, que não tinha feito de propósito." Mais tarde, Don Juan dirigiu-se à Boca do Inferno e lançou ao mar a arma fatal. Como também nos diz o autor do livro, a família nunca mais foi a mesma, sobretudo a Condessa, que nunca recuperou inteiramente da perda do filho mais novo em circunstâncias tão trágicas.
No trono, Juan Carlos envolve-se totalmente no processo que ficou para a História como "transição democrática". Para José Bouza Serrano, "ele é o motor da democratização de Espanha, que lhe exige um esforço titânico. Fumará muito por essa época." A popularidade do monarca cresce e conquista mesmo setores da sociedade espanhola que inicialmente não tinham grande simpatia pelo regresso da monarquia.
Tudo correria bem até ao momento em que o nome de Juan Carlos passou a estar associado a histórias pouco dignificantes, como os sucessivos casos amorosos (os mais famosos dos quais com a apresentadora de Televisão Barbara Rey, a socialite Marta Gayá, a atriz Sandra Mozarowsky e, antes de mais, com Corinne Larsen) que fazem jus à reputação de "pícaros Borbones", associada à sua família, mas sobretudo os escândalos financeiros. Como nos diz José de Bouza Serrano: "O final do reinado foi fatal na medida em que destruiu o capital de popularidade e solidez política que ele tinha construído ao longo de 40 anos. No fundo, pôs à mostra um rei desconhecido, ansioso por dinheiro, que enganava a mulher de uma forma sistemática e não a respeitou." O que restará do reinado de Juan Carlos, quando a História for escrita, com o distanciamento que só a passagem do tempo permite? A imagem do estadista que soube reconduzir o país à normalidade democrática na noite temível de 23 de fevereiro de 1981, ou a do exilado em Abu Dhabi, envolto numa nuvem negra de escândalos e dissipação?
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