Isto Lembra-me Uma História

Manuel Serrão no país dos campeões da xico-espertice

A história precede-nos: Portugal é uma país que encabeça frequentemente as listas de estados mais corruptos e fraudulentos da Europa. No que toca ao embuste, ao engano e ao desvio de fundos, somos uma autêntica sumidade. As figuras que emergem deste nosso particular caldo cultural só trazem como novidade os rostos.

Foto: Sérgio Lemos
24 de março de 2024 | Diogo Xavier

Um dos grandes, talvez dos maiores handicaps da História de Portugal é ser protagonizada maioritariamente por portugueses. É inescapável, bem sei, e não precisam de me chamar à atenção, mas é um aspeto que, a meu ver, nos fragiliza. Há um certo excesso de portugalidade nesta história de se ser português. E se, por um lado, temos de aprender a viver com isso, por outro, não há motivo que nos consiga legitimamente dissuadir de o lamentar. Lamentemos, então. Já agora, e antes que o leitor, imbuído do espírito contemporâneo de arrumação de pessoas de regresso aos seus supostos lugares, pretenda gritar "se queres criticar Portugal, vai mas é para a tua terra", devo esclarecer que a minha terra é Torres Vedras. Não vou longe, portanto. Mas vou criticar Portugal. Ou, pelo menos, uma certa maneira de estar de uma determinada classe de portugueses.

Há quem lhes chame "portugueses de bem", há quem prefira agrupá-los sob a designação lata de "patos-bravos", que é aquele termo guarda-chuva que abriga todos os que o são, mesmo que cada um o seja à sua maneira; em certos sítios, faz-se gala em louvar este tipo de gente, gabam-nos e chamam-lhes "self-made men", a geração mais recente de uma linhagem cuja herança cultural se caracteriza por terem "subido a pulso" na vida; normalmente, distinguem-se dos demais por se orgulharem de ter a "universidade da vida" como sua alma mater; em tempos recentes, tivemos o privilégio de assistir à entrega de louvores e à dedicatória de encómios a alguns destes indivíduos, catalogados de "empreendedores", quando o elogio vinha em português, ou de "entrepreneurs", sempre que o tique bajulatório enfermava da necessidade de bengala anglófona. No fundo, estes campeões da vida e do saber viver são os xicos-espertos. As suas capacidades de superação vão desde a habilidade para ultrapassar pessoas na fila de supermercado até à sucção impiedosa de fundos europeus, dependendo do grau académico que a universidade da vida lhes concedeu.

Se estou a falar de Manuel Serrão e de toda a orquestra que o acompanha na Operação Maestro? É possível que esteja. Mas é claro que ainda estamos no campo e no período dos alegadamentes, e sabemos, ou devíamos saber, que até prova em contrário ninguém é culpado, pelo menos aos olhos da lei. As notícias dizem que Serrão, um eminente empresário "do Norte", como é sobejamente designado - e como se essa designação lhe atestasse o domínio de algum tipo de poder específico, que vai muito além de ser somente um empresário e que, sem dúvida, se estende até muito para lá das capacidades inerentes às do típico e singelo empresário português -, se apropriou indevidamente, e ao longo de vários anos, de fundos europeus cujo destino era outro.

As tecnicalidades abundam, as que vieram a público assentam ainda nas incertezas, mas há detalhes que têm dado nas vistas. Por exemplo, aquele que diz que Manuel Serrão talvez tenha feito usufruto inapropriadamente de cerca de 40 milhões de euros provenientes do fundo europeu FEDER COMPETE 2030. Outro detalhe que tem captado a atenção dos leitores e telespectadores, incluindo os menos atentos, é aquele em que se alega que o empresário do Norte Manuel Serrão talvez tenha habitado num hotel de luxo da cadeia Sheraton durante os últimos oito anos. São apenas detalhes e, já se sabe, nestes assuntos não nos devemos prender aos pormenores das tecnicalidades. Mas há que convir que, caso tudo se confirme, estaremos perante uma masterclass de um doutorado pela infame universidade da vida em técnicas e teorias de desplante e sem-vergonhice.

Segundo a PJ e as notícias que nos últimos dias vieram a público, estão em causa esquemas organizados de fraude que beneficiaram um conjunto de pessoas singulares e coletivas, "lesando os interesses financeiros da União Europeia e do Estado português, quer em sede de financiamento através do FEDER, quer através da subtração aos impostos devidos". O modus operandi assenta alegadamente na "criação de estruturas empresariais complexas, visando a montagem de justificações contratuais, referentes a prestações de serviços e fornecimentos de bens para captação fraudulenta de fundos comunitários no âmbito de, pelo menos, 14 operações aprovadas, na sua maioria, no quadro do Programa Operacional Competitividade e Internacionalização (POCI), executadas desde 2015".

Não será preciso acrescentar que, por cada beneficiário indevido deste tipo de fundos, haverá um ou vários outros que acabam prejudicados. O benefício indevido de uma parte na obtenção de um apoio comunitário vai necessariamente significar o prejuízo de um grupo de outros pretendentes - e agora especulamos: possivelmente, empresários ou empresas com necessidades mais prementes do que a de dormir numa suíte júnior do Sheraton Porto durante oito anos consecutivos (mas cada um é que sabe das suas necessidades e prioridades).

Obviamente, o tema aqui não é Manuel Serrão, nem o seu fiel escudeiro Júlio Magalhães, nem qualquer outro dos envolvidos ou entidades implicadas nesta Operação Maestro. Aqui o tema é o enraizamento cultural deste tipo de práticas em Portugal. Em pleno século XXI, no ano de 2024, sendo Portugal um país-membro da União Europeia há já 38 anos, ainda assistimos a estas manigâncias no âmbito da apropriação indevida de fundos e apoios europeus. De repente, damos por nós a contemplar cenários semelhante àqueles do tempo das vacas gordas, quando os primeiros FEDER financiavam, muitas vezes a fundo perdido ou quase, investimentos na agricultura - e então o País sofreu uma epidemia de Mitsubishi Pajero, que eram considerados ferramentas agrícolas, enquanto campos e campos de sementeiras e estufas de plantações eram votados ao abandono de agricultores que, com os bolsos cheios e montados em jipes vistosos, levavam a vida a plantar a desconfiança entre os vizinhos e parceiros, tanto dentro de fronteiras como para lá delas, levando à má fama dos portugueses da maneira como geriam e aplicavam os fundos europeus.

O relatório anual de atividade de 2022 da Procuradoria Europeia (publicado a 1 de março de 2023) mostrava Portugal como líder destacadíssimo do desvio de fundos europeus. Em 2022, Portugal liderava, num item, a lista de 22 países europeus apoiados por esses fundos. Esse item não era, como poderão imaginar, o retorno do investimento, a prosperidade nem a valorização futura do dinheiro investido. Portugal era o campeão de fraudes com dinheiro da União Europeia. Foram mais de 2,9 mil milhões de euros em danos estimados que as investigações da Procuradoria Europeia apurou em montantes que, vindos dos fundos europeus, terão ido parar às mãos erradas. Para se ter uma ideia de perspetiva, em segundo lugar nessa lista de campeões do xico-espertismo, vinha a Itália - com 2 mil milhões de euros de prejuízos e danos em fraude com fundos europeus. A Itália, com seis vezes a população de Portugal e mais de três vezes a nossa dimensão geográfica, ficou a quase mil milhões de euros de distância da nossa capacidade nacional para defraudar.

Segundo notícias recentes, no final de 2023 a Procuradoria Europeia tinha em curso 19 investigações ativas em Portugal a fundos europeus. No ano anterior, aquele em que fomos campeões europeus da fraude com fundos, havia em curso apenas 10 investigações do mesmo tipo. Somos uma nação de xicos-espertos e de manéis serrões. Gostamos de exigir de quem chega, com a maior intransigência, a seriedade e a honestidade dos santos, mas cá dentro, entre nós, damos cotoveladas cúmplices e piscamos os olhos ao companheiro de carteira por mais uma sacanice, mais um esquema, mais um dinheiro ao bolso, mais uma esperteza saloia. Se alguém, na Europa, tiver dúvidas sobre o que é pobreza, aqui está um país que é um retrato: Portugal é pobreza. De espírito, pelo menos.

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