Conversas

Depois deste vinho, o verde nunca mais foi Igual

Desde o século XVIII que a família Camizão produz vinhos verdes. Das gerações mais novas, João Camizão começou a sua carreira em telecomunicações e, a mulher Leila, na produção de eventos. Hoje dedicam-se ao Sem Igual, um vinho que rompeu tradições, mas sem as estragar.

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17 de fevereiro de 2023 | Augusto Freitas de Sousa

Trabalhou e ainda trabalha em telecomunicações. Esteve em Aveiro, Lisboa, Índia, Porto e hoje vive em Meinedo, Lousada. João Camizão responde quase sempre no plural porque as decisões sempre foram tomadas a dois. Como chegaram até si estas terras?

Vinham da família da minha avó. Os meus avós viveram muitos anos. Nasceram ambos em 1919 e um faleceu em 2021 e o outro em 2022, ambos com 102 anos. Já se fazia vinho na família da minha avó desde o século XVIII, desde 1780, e sabemos porque temos uma adega datada desse ano. E a casa que recuperámos e onde estamos a morar também é de 1783. Não tenho mais dados históricos, porque penso que a maior parte do vinho que se fazia seria vendido a granel. 

Qual era a história dos seus avós?

O meu avô casou com a minha avó na década de 40. Criou uma marca de fogões, Siul, teve uma fábrica grande no Porto e depois mudou-se para Rio Tinto. Antes disso começou a investir nas vinhas talvez na década de 60. Criou a marca Casa de Oleiros e acabou por vender a fábrica, desligando-se completamente para se dedicar ao vinho. Foi ele, Manuel Camizão, quem deu o nome e a cara ao projeto, embora as terras fossem da minha avó.

Como era a sua relação com ele?

Sempre tive uma relação muito próxima, era um neto muito presente e sempre houve o estímulo dele para tentar com que lhe seguisse as pisadas. Queria que eu fosse engenheiro agrónomo, mas não estava para aí virado.

João Camizão esteve em Aveiro, Lisboa, Índia, Porto e hoje vive em Meinedo, Lousada.
João Camizão esteve em Aveiro, Lisboa, Índia, Porto e hoje vive em Meinedo, Lousada. Foto: Sem Igual

A sua família é do Porto?

Nasci no Porto e toda a família é da cidade. Só a geração anterior à minha avó e, mesmo essa, não tenho a certeza, viviam aqui. Os meus avós passavam temporadas, mas sempre viveram no Porto. Tinham a família e os amigos e ainda negócios para conseguirem ter dinheiro para gastar nas propriedades que herdaram. 

No final dos primeiros estudos decidiu-se por outra área…

Foi nessa altura que expliquei ao meu avô que gostava da cidade, que queria trabalhar em engenharia, tecnologia, e fui desenhando a minha carreira nesse sentido. Fiz a licenciatura na Universidade de Aveiro na área das telecomunicações e adorei a minha passagem pela cidade. Demorei oito anos a terminar o curso. Era muito boémio, mas a partir do sexto ano estava a trabalhar e a estudar. Arranjei uma bolsa de investigação científica e, mesmo antes de acabar a licenciatura, já tinha um gabinete no departamento de eletrónica e telecomunicações da universidade. 

Gostava de estar em Aveiro?

Achava que estar na universidade era um ambiente excelente, muitos amigos, muita borga. Aveiro é uma cidade fantástica e tem tudo o que é preciso de bom. Está perto do Porto, tem praia e mar que gosto muito. E estava convencido que era ali que eu queria ficar porque o Porto já era muita confusão para mim. 

Em 2018, decidiram que queriam ficar em Meinedo, Lousada, e avançaram com a obra da adega e da sua casa, onde também têm um alojamento local.
Em 2018, decidiram que queriam ficar em Meinedo, Lousada, e avançaram com a obra da adega e da sua casa, onde também têm um alojamento local. Foto: Sem Igual

Mas saiu…

Surgiu uma oportunidade de emprego em Lisboa na Siemens, onde queriam começar a desenvolver documentação técnica em inglês. Quem me entrevistou foi uma americana que morava na Alemanha e com quem acabei por ter uma relação mais próxima.

Foi para Lisboa?

Em 2004. E em 2005 conheci a Leila. Foi em Cascais, no Coconuts, numa festa da Escola de Hotelaria do Estoril onde ela estava a estudar. Trocámos números de telefone e voltámos a falar uma semana ou duas mais tarde. Fomos namoriscando e começou a ficar sério. 

Qual é o percurso da Leila Camizão?

Nasceu em Angola, filha de angolanos com raízes portuguesas, nomeadamente no Norte em Vila Verde, Braga. Com quatro anos, os pais, também por motivos de instabilidade em Luanda, foram para Hong Kong. O pai, Armando Queiroz Manuel, mais conhecido no mundo de futebol por Mandinho, jogou em Hong Kong, mas acabou por ir morar para Macau onde a Leila esteve até aos 19 anos. Foi para o curso de hotelaria e especializou-se na área da organização de eventos. 

João e Leila Camizão conheceram-se em 2005.
João e Leila Camizão conheceram-se em 2005. Foto: Sem Igual

Mas saíram os dois de Lisboa?

Em 2007 a empresa em que eu trabalhava decidiu abrir um polo em Aveiro, a minha cidade do coração, mas em 2009 essa área de negócios acabou em Portugal. A americana de que falei propôs-me uma posição na Índia com um contrato muito bom, com casa num condomínio privado, motorista e a oportunidade para dar um salto na carreira. 

A Leila também foi?

Calhou numa altura que ela estava a escrever a dissertação de mestrado e aceitei porque ia comigo. E foi na Índia que aconteceram imensas coisas: o nosso primeiro filho Mateus nasceu lá. Comecei a aperceber-me de coisas que tinham muito valor como o vinho. Conheci muita gente de todo o mundo em Bangalore, a cidade da tecnologia com dez milhões de habitantes.

O vinho era dispendioso?

Era muito caro na Índia. Levava sempre vinhos para encontros de expatriados e pediam-me sempre, quando vinha a Portugal, para trazer queijos, enchidos e vinho. 

São
São "cerca de dez hectares, nove hectares aqui em Meinedo e um em Santa Cristina de Nogueira onde temos as nossas vinhas mais antigas de onde saem as marcas Ramadas Metal e Ramadas Wood." Foto: Sem Igual

Foi aí que o vinho falou mais alto? 

Falámos os dois e disse que quando chegássemos a Portugal teríamos de fazer um vinho. Viemos em 2011 para Lisboa e, entretanto, houve uma fusão com a Nokia onde ainda trabalho. 

Esteve em Lisboa por pouco tempo.

Sim, e arranjámos uma estratégia para ir para o Porto. Em julho de 2012 falei com o enólogo da família, Jorge Sousa Pinto, e disse-lhe que queria fazer um vinho. Falei com o meu avô e com a minha tia, a filha que esteve mais ao lado dele na questão dos vinhos, e disse-lhes que tinha uma ideia para fazer um vinho diferente do que se fazia na casa. 

O que lhes disse?

Que precisava de usar e abusar do enólogo e, depois, comprar 500 litros de vinho para fazer a minha marca.

"O meu avô ficou todo contente, mas quando provou o vinho disse que não ia vender uma única garrafa porque era muito caro e não tinha gás." Foto: Sem Igual

Mas a primeira impressão não foi brilhante. 

O meu avô ficou todo contente, mas quando provou o vinho disse que não ia vender uma única garrafa porque era muito caro e não tinha gás. Mas isso era o que eu precisava de ouvir, na minha cabeça o caminho estava certo. Tinha de ser algo diferente.

Vinho caro?

Estávamos a falar de um price point quatro vezes acima daquilo que se praticava, 13 euros para um branco de Azal e Arinto em 2012. 

Mudaram-se para o Porto? E depois para Meinedo, Lousada.

Eu em teletrabalho e a Leila nos eventos, onde acompanhou aberturas de hotéis, restaurantes, roteiros e itinerários.  A coisa tornou-se cada vez mais fácil. Já estávamos a meia hora de carro. A Leila foi fundamental para essa experiência piloto porque fizemos 600 garrafas e o acesso a sommeliers e a chefes foi facilitado pelos seus contatos. Estivemos no Porto dois ou três anos, mas teríamos de ir morar para Meinedo. Queria aprender mais de viticultura, acelerar mais as coisas. Já com três filhos decidimos ir para uma casa pequenina, mas tínhamos de perceber se a família se adaptava. E passado um ano percebemos que é muito melhor morar em Meinedo do que no Porto porque tem tudo a ver com a nossa dinâmica. 

"Já com três filhos decidimos ir para uma casa pequenina, mas tínhamos de perceber se a família se adaptava. E passado um ano percebemos que é muito melhor morar em Meinedo do que no Porto." Foto: Sem Igual

Remodelaram a vinha e outra casa? 

Em 2018 decidimos que era aqui queríamos ficar, avançámos com a obra da adega e da nossa casa onde também temos um alojamento local. Há uma parcela pequena com menos de um hectare em Santa Cristina de Nogueira onde temos uma casa de família muito bonita. Fomos o primeiro núcleo familiar de, pelo menos há quatro gerações, a viver aqui em permanência. 

Qual foi o primeiro vinho? 

O primeiro Sem Igual saiu quando chegámos a Portugal. Foi uma decisão tomada em 2013 com a colheita de 2012 e na fase de sair de Lisboa e vir morar para o Porto. Nessa altura eram uvas da Casa de Oleiros das vinhas do meu avô, mas começámos a introduzir as vinhas aqui a partir de 2016. Todos os rótulos até 2016 têm o meu nome e daí para a frente começamos a utilizar as vinhas de Meinedo e de Santa Cristina de Nogueira

Estudou o vinho?

Em 2013 fiz uma pós-graduação em viticultura e enologia na Faculdade de Ciências do Porto. Preocupei-me muito em aprender com os outros e não ficar no meu casulo, mas ver o que é que os outros estão a fazer, aprender, partilhar erros, é sempre uma forma muito diferente daquilo que os nossos antepassados faziam.

Na minha pós-graduação em viticultura e enologia,
Na minha pós-graduação em viticultura e enologia, "preocupei-me muito em aprender com os outros e não ficar no meu casulo, mas ver o que é que os outros estão a fazer, aprender, partilhar erros." Foto: Sem Igual

Hoje vivem do vinho?

A Leila está 100% aqui e eu mantenho o vínculo com a Nokia. Provavelmente no final deste ano poderia conseguir viver do vinho, mas o Covid e as guerras criaram num período de incerteza. 

Exportação é importante?

Exportamos mais do que vendemos por cá. Abrimos o mercado da Ásia, Singapura, Japão, Coreia do Sul. Ou seja, se nós não morássemos aqui seria um negócio provavelmente muito difícil. 

O que têm aqui? 

Cerca de dez hectares, nove hectares aqui em Meinedo e um em Santa Cristina de Nogueira onde temos as nossas vinhas mais antigas de onde saem as marcas Ramadas Metal e Ramadas Wood. Nas brancas temos Azal e Arinto para os nossos melhores brancos e um pouco de Alvarinho

E tintas? O Vinhão típico daqui?

Toda a gente acha que o Vinhão tem de ser em malga, tradicional, o que não agrada a muitas pessoas. Acho que é uma casta muito interessante e este ano temos duas barricas de 500 litros e, se calhar, vai aparecer um Vinhão nosso de 2022. Também temos Touriga Nacional e Baga. 

"Não há de ser por causa da tecnologia que os nossos vinhos não vão ser bons." Foto: Sem Igual

Qual é a vossa estratégia?

Assenta em dois pilares: um tem a ver com a tradição do nosso terroir e práticas culturais antigas e depois temos a parte da tecnologia porque não paramos no tempo, estudamos e temos acesso a muita competência, conhecimento e equipamento. E não há de ser por causa da tecnologia que os nossos vinhos não vão ser bons.

Têm mais vinhos?

Começámos em 2012 com o Sem Igual de rótulo azul, na altura para explicar que podíamos fazer o vinho verde 2.0. Ou algo que seria o vinho verde diferente daquilo que é o típico e provar que temos um terroir para fazer vinhos brancos de excelência. 

Na altura não havia verdes sem gás.

Sim, mas anos mais tarde estava na feira da Prowein, na Alemanha, numa zona onde estão todos os vinhos verdes à prova e fiquei desiludido porque considerei que teria de mudar o nome do vinho porque já havia uma tendência brutal no perfil dos verdes para se aproximarem do Sem Igual. Estão a retirar o gás, são mais secos e, portanto, o nome Sem Igual qualquer dia cai no ridículo porque já não é tão diferente dos outros. 

"No portefólio temos os nossos vinhos clássicos, o Sem Igual Metal e Wood, e as bolhas com história: o Sem Mal espumante feito com Azal e Arinto que fazemos sem parar desde 2015, o Petnat rosado, um blanc de noirs, e vamos lançar agora um Orange de 2021, um Sem Mal Azal e um rosé. " Foto: Sem Igual

E o Sem Mal?

Pegámos no vinho verde de antigamente, começou a aparecer esta componente mais histórica no nosso portefólio. É um vinho que não tem sulfitos adicionados quando é engarrafado. É um vinho que na garrafa está a fazer a fermentação maloláctica. É importante para explicar porque é que os vinhos desta região se chamavam vinhos verdes e porque é que a região tomou o nome do vinho verde. No portefólio temos os nossos vinhos clássicos, o Sem Igual Metal e Wood, e as bolhas com história: o Sem Mal espumante feito com Azal e Arinto que fazemos sem parar desde 2015, o Petnat rosado, um blanc de noirs, e vamos lançar agora um Orange de 2021, um Sem Mal Azal e um rosé. 

Têm um vinho entrada de gama? 

A nossa entrada de gama é vender uva bem vendida. Este ano não correu bem porque falámos com os nossos compradores de uva e face às subidas do gasóleo e dos produtos, a uva ia subir 30%, mas só um dos clientes acompanhou. 

Também avançaram com o Enoturismo aqui em Meinedo…

É onde vivemos e onde há cinco suítes, mas uma parte do edifício é comum.

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