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O tesouro submerso ao largo de Sines: 40 mil garrafas de vinho no fundo do mar

Envelhecer vinhos no mar parece ser uma das grandes tendências da enologia atual. Mas será que funciona? Ou tudo não passa de uma manobra de marketing para justificar preços que podem multiplicar por dez? Fomos provar dezenas de vinhos para tentar perceber…

40 mil garrafas de vinho submersas perto de Sines para envelhecimento Foto: DR
22 de agosto de 2025 | Bruno Lobo
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Não sabemos se alguma vez houve um pessegueiro na ilha, mas temos a certeza de que existem milhares de garrafas afundadas ao largo, acessíveis num belo e tranquilo mergulho recreativo. Podem ser trazidas à superfície e provadas a bordo ou levadas para casa. A experiência é oferecida pela Ecoalga, uma empresa que começou como escola de mergulho e que, há quase 10 anos, aderiu a esta tendência marítima. Criou a Adega do Mar, uma das maiores adegas submarinas da Europa, com quatro spots diferentes ao largo de Sines – um deles junto à ilha do Pessegueiro – onde guarda atualmente vinhos de 30 produtores e quase 40 mil garrafas submersas. Nem todas de vinho: também há gin, rum, ginjinha e até cerveja. 

Apesar de ser um território novo, a ideia de mergulhar garrafas para influenciar o processo de envelhecimento tem vindo a ganhar adeptos em todo o mundo: França, Itália, Espanha, Grécia, EUA, Argentina… quase todos os grandes países produtores experimentam hoje esta prática, que – como todas as novidades – tem os seus entusiastas e os seus críticos. Para alguns, não passa de uma moda ou pior, de uma jogada de marketing destinada a inflacionar os preços, já que a valorização pode ser até 10 vezes superior à versão “terrestre”. 

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A Já Te Disse – pequeno produtor boutique de Estremoz – só faz vinhos especiais, mas o tinto base custa 85 euros, enquanto o pack com duas garrafas (uma envelhecida normalmente e a outra submersa) chega aos 790 euros. O branco fica a 40 euros, e o pack a 750€. São diferenças abissais. 

Foi precisamente para debater estas questões – e provar que a enologia subaquática tem pernas para nadar – que a Entidade Regional de Turismo do Alentejo e Ribatejo (ERT), a Câmara Municipal de Sines e a Associação Portuguesa de Enoturismo (APENO) organizaram recentemente um evento em Sines com dezenas de provas comparativas e um painel de discussão que incluía jornalistas, sommeliers, produtores e académicos.

O mar acelera o processo de envelhecimento Foto: DR

Garrafas de mergulho 

A enologia subaquática moderna nasceu quase por acaso, com a descoberta de um par de naufrágios no mar do Norte. O primeiro em 1998, quando encontraram centenas de garrafas de champagne de 1916 num navio afundado por um submarino alemão, durante a Primeira Guerra Mundial. Surpreendentemente, o champanhe estava em perfeitas condições e a notícia inspirou alguns produtores a realizarem as suas próprias experiências. Foi o caso do espanhol Raúl Pérez, com os seus Albariños das Rias Baixas, que lhe trouxeram enorme notoriedade. 

O espanhol é um amigo de longa data de Cristiano Van Zeller e seria, anos mais tarde, uma das inspirações para o , o primeiro vinho do Porto a estagiar numa adega submarina.

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De qualquer forma, a tendência só ganhou força a partir de 2010, com uma nova descoberta: champanhes de 1840, ainda mais antigos, e igualmente em excelentes condições. Como a maioria das garrafas eram Veuve Clicquot, a casa francesa iniciou um programa de envelhecimento subaquático que a coloca hoje na linha da frente do tema – ainda que não seja a única. 

Joaquim Parrinha, mentor da Adega do Mar, recorda também achados arqueológicos que indiciam que os romanos já usariam este método, em pequenas ânforas seladas com cera de abelha, e alguns produtores italianos, como o Podere San Cristoforo, têm vindo a recriar esse processo com ótimos resultados. No caso de Parrinha, a aventura começou em 2013, embora a Adega do Mar só tenha sido oficializada em 2020. Desde então passou a receber vinhos de todo o país, chegando às atuais 40 mil garrafas – e capacidade para muitas mais.

As adegas do mar tornam-se repositórios de vida marinha Foto: DR

Afinal, o que acontece aos vinhos debaixo do mar? 

A profundidade em si não parece afetar o vinho, já que a pressão atua fora da garrafa. Mas a ausência de oxigénio e de luz, as baixas temperaturas, constantes, e até o suave movimento das marés criam condições únicas que parecem favorecer um envelhecimento mais equilibrado. 

E depois de compararmos mais de duas dezenas de vinhos, ouvirmos especialistas e lermos sobre provas semelhantes, torna-se evidente que os vinhos de mar são realmente diferentes dos de terra – e normalmente melhores. Mas nem sempre.  

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No Código Manifesto 2023, por exemplo, um superlativo branco do Dão, a versão terrestre mostrou-se mais complexa e exuberante do que a marítima, embora esta estivesse mais subtil. De uma forma geral, notámos uma ligeira diminuição do teor alcoólico em quase todos os vinhos e variações de cor mais acentuadas nos brancos do que nos tintos. Estes últimos tendem a ficar mais suaves, com taninos mais redondos, enquanto os brancos apresentam maior tensão e energia. Acima de tudo, percebe-se que não há regras fixas, mas quase tantas exceções quantos os vinhos provados.

Joaquim Parrinha, da Adega do Mar Foto: DR

Curiosamente – ou talvez não – vinhos de regiões com forte influência marítima mostraram menos diferenças do que os vinhos de interior. Foi o caso do Tarelo, do Pico, cujas duas versões eram muito próximas, contra um branco Torre de Palma (Alvarinho e Arinto), que começou mais macio e aromático no nariz antes de explodir vibrante na boca, com uma acidez muito mais marcada do que no terrestre

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Ao ouvir os especialistas, percebe-se também que ainda há muitas perguntas em aberto: será que o estágio prévio em madeira, cimento ou inox influencia o resultado final? E as castas? Algumas serão mais propensas à influência marítima? Não há respostas cabais para estas, nem para outras perguntas, mas as diferenças estão lá, por vezes mínimas – pequenas nuances na textura ou na acidez – mas bem evidentes no palato. 

Falou-se também muito num suposto toque salgado mais presente nos vinhos submersos, mas as académicas ali presentes depressa esclareceram que a rolha é selada e o vidro não é poroso, logo não é possível haver “transferências” entre vinho e mar. O mesmo será válido para os corais, que não alteram o conteúdo, mas conferem às garrafas uma identidade única, marcada inclusivamente pelo local onde foram submersas.

O processo favorece o nascimento de bancos de corais que se vão aproveitar das garrafas submersas para se desenvolver Foto: DR

No final, ficámos com duas certezas: os vinhos submersos são realmente diferentes – muitas vezes melhores – e merecem o seu lugar ao sol. Mas o mar não faz milagres: se o vinho já não era bom cá fora, não será a água que o vai salvar.

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