Não sabemos se alguma vez houve um pessegueiro na ilha, mas temos a certeza de que existem milhares de garrafas afundadas ao largo, acessíveis num belo e tranquilo mergulho recreativo. Podem ser trazidas à superfície e provadas a bordo ou levadas para casa. A experiência é oferecida pela Ecoalga, uma empresa que começou como escola de mergulho e que, há quase 10 anos, aderiu a esta tendência marítima. Criou a Adega do Mar, uma das maiores adegas submarinas da Europa, com quatro spots diferentes ao largo de Sines – um deles junto à ilha do Pessegueiro – onde guarda atualmente vinhos de 30 produtores e quase 40 mil garrafas submersas. Nem todas de vinho: também há gin, rum, ginjinha e até cerveja.
Apesar de ser um território novo, a ideia de mergulhar garrafas para influenciar o processo de envelhecimento tem vindo a ganhar adeptos em todo o mundo: França, Itália, Espanha, Grécia, EUA, Argentina… quase todos os grandes países produtores experimentam hoje esta prática, que – como todas as novidades – tem os seus entusiastas e os seus críticos. Para alguns, não passa de uma moda ou pior, de uma jogada de marketing destinada a inflacionar os preços, já que a valorização pode ser até 10 vezes superior à versão “terrestre”.
A Já Te Disse – pequeno produtor boutique de Estremoz – só faz vinhos especiais, mas o tinto base custa 85 euros, enquanto o pack com duas garrafas (uma envelhecida normalmente e a outra submersa) chega aos 790 euros. O branco fica a 40 euros, e o pack a 750€. São diferenças abissais.
Foi precisamente para debater estas questões – e provar que a enologia subaquática tem pernas para nadar – que a Entidade Regional de Turismo do Alentejo e Ribatejo (ERT), a Câmara Municipal de Sines e a Associação Portuguesa de Enoturismo (APENO) organizaram recentemente um evento em Sines com dezenas de provas comparativas e um painel de discussão que incluía jornalistas, sommeliers, produtores e académicos.
Garrafas de mergulho
A enologia subaquática moderna nasceu quase por acaso, com a descoberta de um par de naufrágios no mar do Norte. O primeiro em 1998, quando encontraram centenas de garrafas de champagne de 1916 num navio afundado por um submarino alemão, durante a Primeira Guerra Mundial. Surpreendentemente, o champanhe estava em perfeitas condições e a notícia inspirou alguns produtores a realizarem as suas próprias experiências. Foi o caso do espanhol Raúl Pérez, com os seus Albariños das Rias Baixas, que lhe trouxeram enorme notoriedade.
O espanhol é um amigo de longa data de Cristiano Van Zeller e seria, anos mais tarde, uma das inspirações para o Van Zellers & Co Vintage Port 2020 Ocean Aged, o primeiro vinho do Porto a estagiar numa adega submarina.
De qualquer forma, a tendência só ganhou força a partir de 2010, com uma nova descoberta: champanhes de 1840, ainda mais antigos, e igualmente em excelentes condições. Como a maioria das garrafas eram Veuve Clicquot, a casa francesa iniciou um programa de envelhecimento subaquático que a coloca hoje na linha da frente do tema – ainda que não seja a única.
Joaquim Parrinha, mentor da Adega do Mar, recorda também achados arqueológicos que indiciam que os romanos já usariam este método, em pequenas ânforas seladas com cera de abelha, e alguns produtores italianos, como o Podere San Cristoforo, têm vindo a recriar esse processo com ótimos resultados. No caso de Parrinha, a aventura começou em 2013, embora a Adega do Mar só tenha sido oficializada em 2020. Desde então passou a receber vinhos de todo o país, chegando às atuais 40 mil garrafas – e capacidade para muitas mais.
Afinal, o que acontece aos vinhos debaixo do mar?
A profundidade em si não parece afetar o vinho, já que a pressão atua fora da garrafa. Mas a ausência de oxigénio e de luz, as baixas temperaturas, constantes, e até o suave movimento das marés criam condições únicas que parecem favorecer um envelhecimento mais equilibrado.
E depois de compararmos mais de duas dezenas de vinhos, ouvirmos especialistas e lermos sobre provas semelhantes, torna-se evidente que os vinhos de mar são realmente diferentes dos de terra – e normalmente melhores. Mas nem sempre.
No Código Manifesto 2023, por exemplo, um superlativo branco do Dão, a versão terrestre mostrou-se mais complexa e exuberante do que a marítima, embora esta estivesse mais subtil. De uma forma geral, notámos uma ligeira diminuição do teor alcoólico em quase todos os vinhos e variações de cor mais acentuadas nos brancos do que nos tintos. Estes últimos tendem a ficar mais suaves, com taninos mais redondos, enquanto os brancos apresentam maior tensão e energia. Acima de tudo, percebe-se que não há regras fixas, mas quase tantas exceções quantos os vinhos provados.
Curiosamente – ou talvez não – vinhos de regiões com forte influência marítima mostraram menos diferenças do que os vinhos de interior. Foi o caso do Tarelo, do Pico, cujas duas versões eram muito próximas, contra um branco Torre de Palma (Alvarinho e Arinto), que começou mais macio e aromático no nariz antes de explodir vibrante na boca, com uma acidez muito mais marcada do que no terrestre.
Ao ouvir os especialistas, percebe-se também que ainda há muitas perguntas em aberto: será que o estágio prévio em madeira, cimento ou inox influencia o resultado final? E as castas? Algumas serão mais propensas à influência marítima? Não há respostas cabais para estas, nem para outras perguntas, mas as diferenças estão lá, por vezes mínimas – pequenas nuances na textura ou na acidez – mas bem evidentes no palato.
Falou-se também muito num suposto toque salgado mais presente nos vinhos submersos, mas as académicas ali presentes depressa esclareceram que a rolha é selada e o vidro não é poroso, logo não é possível haver “transferências” entre vinho e mar. O mesmo será válido para os corais, que não alteram o conteúdo, mas conferem às garrafas uma identidade única, marcada inclusivamente pelo local onde foram submersas.
No final, ficámos com duas certezas: os vinhos submersos são realmente diferentes – muitas vezes melhores – e merecem o seu lugar ao sol. Mas o mar não faz milagres: se o vinho já não era bom cá fora, não será a água que o vai salvar.