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O homem faz o vinho: a história de Hamilton Reis e do Natus

Onde nada existia, nasceu uma vinha e uma adega. Hamilton Reis tinha o sonho de fazer um vinho profundamente seu, do princípio ao fim, da terra até à garrafa. E assim surgiu o Natus, obra-prima de minúcia artesanal que pode ser encontrada na maior parte dos restaurantes com estrela Michelin em Portugal.

Hamilton Reis cria o Natus, vinho artesanal presente em restaurantes Michelin em Portugal Foto: DR
23 de dezembro de 2025 | Diego Armés
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"Je suis vigneron", diz Hamilton Reis aos visitantes que recebe na sua pequena quinta - um grupo de belgas que fazem um tour pelo Alentejo em busca de vinhos especiais para os seus estabelecimentos. São proprietários de hotéis-boutique, de estabelecimentos enoturísticos, de restaurantes de revisitação da cozinha tradicional pela via pós-modernista, de lojas trendy de produtos de nicho. Vêm em busca de vinho é certo, mas vêm também descobrir como é feito o Natus (e ainda o Intus) um néctar que a cada colheita fica mais próximo de se tornar uma lenda. 

Nascido do sonho obstinado de Hamilton, foi em torno dessa miragem perseverante que se construiu tudo o que aquele grupo de turistas enófilos agora contempla: a vinha, a casa, a adega. Cada coisa no seu lugar, com uma lógica irrefutável, a sua explicação científica e a sabedoria herdada dos antigos - porque, aqui e no método de Hamilton Reis, o saber moderno não substitui o ancestral, antes vem completá-lo, acrescentá-lo, por vezes traduzi-lo em números e formulas químicas, mas sem nunca o considerar obsoleto.

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A VINHA E A ADEGA DE GARAGEM

Em torno da casa, há uma pouco visível, porém extensa, cicatriz que envolve grande parte do edifício junto à base deste. "Cicatriz" não é metáfora A casa tem mesmo uma marca, comprida e subtilmente pronunciada, à face das paredes exteriores, como um traço de memória dos tempos da sua construção e das dificuldades dessa era. Hamilton Reis diz que, no início, era um erro, um acabamento mal feito. Depois, o erro piorou com as tentativas do empreiteiro de o consertar' - foi ficando mais feio. Até que acabou por ficar assim, uma cicatriz para memoria futura.

A marca remete para todo o processo e todo o trabalho que foi necessário para se chegar até aqui, a este ponto. Desde o princípio de tudo, em 2008, quando Hamilton e Susana, mulher e companheira desta aventura que é a vinha Natus, compraram o terreno. A casa foi, também ela, projetada em função do sonho: o piso superior para ser a residência familiar, o inferior sendo a adega - "uma adega de garagem, o sítio onde tudo acontece", segundo o produtor. A época, naquele terreno não existia nada além de algumas oliveiras centenárias ao abandono (que foram, mais tarde, cuidadosamente transplantadas para as localizações atuais e que dão as azeitonas das quais a família extrai o azeite que se consome em casa) e ervas - nem eletricidade ou água corrente havia. Quando Hamilton decidiu começar a preparar o terreno, fertilizando-o com adubos naturais (de animas trazidos para pastar no terreno), dando início a uma prática de profundo respeito pela terra e pelos ciclos naturais, os vizinhos questionavam-no acerca do que pretendia fazer. Explicava que queria fazer uma vinha biológica e todos achavam que ele não sabia o que dizia - hoje, visitam-no para tirar notas sobre como se faz.

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Levou tempo até que o terreno ficasse apto. Só em 2017, nove anos depois do início dos trabalhos de fertilização, Hamilton procedeu à plantação da vinha. Optou por plantar as videiras em vaso, conduzidas até aos dois metros de altura e fechadas em torno de uma guia, como um arbusto fechado. "Assim, as folhas crescem em torno da guia, a 360°, protegendo a uva do sol e evitando as queimaduras." Depois foi só esperar mais três anos pela primeira vindima para fazer o primeiro vinho, o Natus 2020 - que chegou ao mercado em 2022: 14 anos após o início da aventura.

"Era necessário tempo - e muito. Primeiro, para garantir a pureza e a autenticidade do solo. Depois, para estudar a fundo a região: clima, castas, cultura vínica, processos e tradições. Só assim conseguiríamos entender como conciliar tudo isto com a nossa identidade e com o estilo de vinho que queriamos fazer." Hamilton explica que foi fazendo tudo isto, ao mesmo tempo que ele e Susana trabalhavam, projetavam e, posteriormente, construíam a adega e a casa - e ainda criavam uma família: as filhas Mariana e Margarida nasceram em 2009 € 2014. Respetivamente.

Vinho Natus, de Monte Natus, Cancelinha, Portugal, com produção artesanal Foto: DR

HAMILTON REIS

Ao contrário do que disse ao grupo de enófilos belgas que o visitavam ao mesmo tempo que nós, Hamilton não é apenas "un vigneron", um enólogo. em português. Também o é, certamente, mas alguém que projeta toda uma vinha e aplica um processo longo e demorado até obter o que pretende, seguindo padres rígidos de agricultura biológica - a vinha Natus e os seus vinhos têm certificação biológica -, aplicando métodos que misturam sofisticação e ancestralidade (por exemplo, no uso de talhas exclusivamente para a fermentação alcoólica), tem de ser muito mais do que "um enólogo". O mentor do projeto trata, então, de se apresentar: "Hamilton Reis, natural do Porto, 49 primaveras. Formado em Engenharia Agrícola, com licenciatura em Microbiologia (daquelas a sério, de cinco anos), seguida de uma pós-graduação em Viticultura e Enologia".

O currículo académico explica muito, mas não tudo. "Comecei como enólogo assistente na Herdade dos Grous, em 200;. Em seguida, trabalhei na Austrália e na Nova Zelândia, na Jindalee Estate, onde fui responsável de laboratório e diretor de engarrafamento." Não acaba aqui. "Regressei a Portugal para assumir a adega (da Herdade] dos Grous até 2006. Passei, depois, para enólogo nas Cortes de Cima, onde fui diretor de Enologia de 2008 até 2020. Desde esse ano, sou diretor de Enologia da Herdade do Mouchão." Pelo meio. nasceu o Natus.

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Hamilton aproveita para explicar de que modo o profundo conhecimento da região do Alentejo e da sub-região da Vidigueira, que obteve durante o longo período que trabalhou nas Cortes de Cima, contribuiu para a escolha do terroir da Natus. O solo pobre, de xisto, mas com abundância de água "estamos sobre um lençol freático riquíssimo, que vem desde Alqueva até aqui", o que lhe permite absoluta independência quanto a recursos aquíferos -, a serra do Mendro, que faz de escudo. a norte, e que encaminha os ventos atlânticos, a amplitude térmica exuberante. que nos verões de dias muito quentes garante noites fresquíssimas, a sombra do fim de tarde. que permite às uvas o início de um repouso regenerador ainda durante a hora de sol. Todo o saber que foi colhendo ao longo do percurso desagua aqui na Natus.

OS VINHOS

"Temos atualmente quatro vinhos, divididos em duas linhas, Natus e Intus, cada uma com uma versão branca e outra tinta." Esta frase antecede uma revelação: Hamilton não gosta da designação "vinho natural": considera-a pouco rigorosa. E explica porquê. "Nos vinhos brancos. o Intus e o Natus são a prova de que quem faz o vinho é o Homem - não há vinho natural: a uva é natural, mas eu é que faço o vinho. E a diferença entre estes dois vinhos demonstra-o. A natureza dá-nos a vinha, mas quem faz o vinho é o Homem. Ambos os vinhos vêm exatamente do mesmo sítio. das mesmas uvas, da mesa extração. São separados somente no momento anterior a fermentação. A partir dai, cada um segue o seu caminho."

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E é nesse caminho, até este ponto conduzido pela natureza, que chega a mão do Homem - no caso, a mão de Hamilton - e toma conta do destino do vinho. "O Intus é a expressão pura da uva. Fermenta na cuba, onde depois estagia durante um ano. O Natus é a expressão da pessoa, do terroir e do processo. Não é um vinho de talha - mas passa pela talha, é o que se chama 'vinho de bica aberta': o sumo da uva, depois de extraído e separado das partes sólidas, fermenta na talha. Em seguida, faz a fermentação malolática em barricas velhas e vai estagiar em barricas durante um ano."

Hoje, a Natus produz por volta de 3o toneladas de uva, o que corresponde a cerca de 20 mil garrafas, divididas entre Intus e Natus, brancos e tintos. O empreendimento, que começou com 1.5 hectares de terra (que ainda hoje correspondem ao terreno principal, em torno da casa da família), colhe agora uvas de 4 hectares - acrescentaram-se as vinhas da Ribera e de Aquas de Lebre, ambas de vinhas velhas de sequeiro, compostas por castas exclusivamente portuguesas e sobretudo locais (na vinha Natus, as castas tintas são Castelão, Alfrocheiro, Tinta Miúda e Trincadeira; nas brancas, há cedências regionais).

O RESULTADO

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Os vinhos Natus são cada vez mais apreciados e elogiados. Enquanto a Revista de Vinhos considerou a Natus Produtor Revelação do Ano, a Grandes Escolhas considerou o Natus um dos melhores vinhos do no. Recentemente, o crítico Luís Gradíssimo destacou os Natus (branco e tinto) entre os cinco melhores vinhos do Alentejo da atualidade. Lá fora, as criações artesanais e sofisticadas de Hamilton Reis também não passam despercebidas, tendo recebido excelentes críticas de, entre outros. Julia Harding, do panel de Jancis Robinson, e rasgados elogios de Mark Squires, ex-colaborador da Robert Parker Wine Adrocate.

Sendo vinhos de produção reduzida, não são fáceis de encontrar - a não ser que os enófilos frequentem os restaurantes certos. Procurando aqueles que têm estrela Michelin, aumenta-se a probabilidade de encontrar um fabuloso Natus. Do Belcanto, em Lisboa, ao Ocean, em Porches, passando pelo Pedro Lemos, no Porto, ou pelo Il Gallo D'Oro, no Funchal - entre alguns outros, todos eles distintos -, é possível encontrar esta surpreendente maravilha, gerada pela natureza, na Vidigueira, e feita pelo Homem, Hamilton Reis, na sua "adega de garagem". Apanhem-no se puderem.

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