É um lugar de extremos suaves, com noites frias e dias quentes, fora das denominações de origem protegida da região alentejana. Os solos estão numa zona de transição entre as argilas, que retêm melhor a humidade, e as areias, mais secas. Um terroir com todas as condições para desenvolver uvas frescas, acidez marcante, corpo e potência, mas também elegância e suavidade.
Some-se uma produção limitada, uvas selecionadas na vinha, colheitas feitas à mão, pisa a pé em pequenos lagares… tudo muito boutique e tradicional, que a mecanização não entrou no Monte da Bica. E assim temos potencial para fazer grandes vinhos. Diferentes.
Essa aposta é evidente no recurso à Solera, um conceito típico dos vinhos de Jerez, em Espanha, mas bastante mais raro deste lado da fronteira. O método consiste no envelhecimento em diferentes níveis de barris, geralmente empilhados. Os vinhos mais antigos estão ao nível do solo (daí o nome) e é daqui que se retira parte do líquido para engarrafar. Esse espaço é posteriormente ocupado pela trasfega dos barris de cima, ganhando espaço para a entrada da nova colheita, no topo. O resultado são vinhos sem ano, marcados de uma forma única pelo tempo – com profundidade e complexidade acrescidas, mas também uma consistência muito superior ao longo das várias colheitas.
“Transmite aos vinhos algo que sentimos ser essencial: a magia do tempo”, revela a proprietária Manuela Pinto Gouveia, explicando também, que devido à dimensão da produção, não seguem exatamente o sistema tradicional: “Temos barricas de diferentes capacidades em Solera onde, todos os anos, tanto retiramos como adicionamos vinho do ano. Assim refrescamos a nossa Solera anualmente”, num processo que começou já na vindima de 2016.
Cada um destes vinhos em Solera passou cerca de 48 meses em barricas, mais 12 meses em inox e outros 12 meses em garrafa antes de chegar ao mercado. Para já, reservaram este método para um branco e um rosé, embora estudem a possibilidade de incluir futuramente um tinto. Curiosamente, e como a quinta não tem castas brancas, trata-se de um blanc de noirs, ou seja, um branco produzido a partir de uvas tintas.
Apesar da raridade do método Solera em Portugal – de repente, lembramo-nos apenas de três outros exemplos (um branco açoriano de Maçanita, um espumante de Filipa Pato e um branco da Quinta da Alorna) – a herdade optou por não destacar esse facto no nome, que apenas faz referência a não ser um vinho de colheita (Non Millésime): “Não sentimos muita necessidade de o revelar no rótulo”, explica a proprietária, voltando a apontar para “a magia da solera”, que é “sentida no vinho, não nas palavras”.
Manuela é atualmente a quarta geração à frente da herdade, que está nas mãos da sua família desde 1919. Chegou a ter 1200 hectares, mas hoje “resume-se” a 350, onde se inclui uma floresta “onde coexistem sobreiros, pinheiros mansos, ovelhas em pastoreio livre e culturas tradicionais”. Sob a sua gestão o Monte da Bica adotou um modelo de agricultura regenerativa, “com práticas sustentáveis e respeito pela biodiversidade”, incluindo na vinha: “temos uvas com maior equilíbrio nutricional, mais complexidade aromática e melhor estrutura. Além disso, estes ciclos mais sustentáveis aumentam a longevidade das vinhas, reforçando a vitalidade do ecossistema a longo prazo.”
O vinho sempre fez parte do negócio, mas era sobretudo um vinho “caseiro”, para consumo interno ou usado como moeda de pagamento aos jornaleiros. Foi o pai de Manuela, Alberto Pinto Gouveia, quem começou a investir seriamente na viticultura há cerca de 20 anos e datam dessa altura os 5 hectares de vinha que a herdade possui atualmente, “plantados nos solos mais pobres e desafiantes”.
Escolheram castas autóctones, Castelão, Touriga Nacional, Alicante Bouschet e Aragonês, completando-as com algumas internacionais (Cabernet, Syrah e Merlot). A marca só nasceu em 2016. Há menos de uma década.
A enologia está a cargo de Andrés Herrera (Torero Wines), que apesar da pronúncia nasceu em Oeiras e fez carreira sobretudo no Alentejo, em projetos como a Malhadinha Nova ou a Fita Preta. Mais diretamente no leme está Madalena Torres Pereira, a enóloga residente, e até muito recentemente contavam também com a colaboração de Paolo Nigra (da Fiúza) nalguns vinhos, como o topo de gama APG Grande Reserva 2020 - lançado em honra do patriarca.
Para breve, ainda sem data marcada – “não temos pressa” - surgirá também um TPG, de Teresa Pinto Gouveia, a matriarca da família “cuja presença e inspiração estão em cada detalhe deste projeto”, conclui a filha.
Se dúvidas houvesse de que esta é uma saga familiar, os cinco lagares presentes na velha adega (de 1940) receberam os nomes dos netos do patriarca Alberto (Antón, Fernandinha, Joana, Zé Pedro e André). Nesta vindima estrearam mais dois, agora com os nomes dos pais, Alberto e Teresa, “perpetuando assim a ligação da família ao vinho”.
Estes dois lagares ampliam as opções de vinificação, até porque a gama compreende já dez referências distintas – embora a produção total não ultrapasse as 20 mil garrafas por ano. Ou seja, fazem muitos vinhos diferentes, embora em quantidades muito pequenas de cada.
Novidade maior, ainda, será um boutique hotel a estrear para o ano, um “velho sonho dos pais”, que procura “recuperar a hospitalidade da casa”, oferecendo uma experiência imersiva no mundo dos vinhos, com provas e lagaradas, mas permitindo igualmente descobrir o showroom Manumaya, uma galeria com peças artesanais da Guatemala – outra das paixões de Manuela Pinto Gouveia. Um projeto natural da Comporta, mas que também já chegou a este pedaço original do Alentejo.