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São Martinho: fomos às adegas e provámos o vinho de talha

Vila de Frades, junto à Vidigueira, no Baixo Alentejo, é designada a capital do vinho de talha. A tradição de provar o vinho novo é aqui levada muito a sério. E ainda bem, porque o magusto foi nada menos que memorável.

Magusto em Vila de Frades com vinho de talha da Gerações da Talha
Magusto em Vila de Frades com vinho de talha da Gerações da Talha Foto: DR
13 de novembro de 2025 | Diego Armés

As nuvens que, na véspera, faziam temer o mau tempo dissiparam-se, abrindo caminho a um sol radioso e morno. É o proverbial Verão de S. Martinho em todo o seu esplendor, fazendo reluzir as paredes cor de cal que, debaixo desta cúpula azul e dourada, ganham tons ocre, despertando uma sensação de aconchego que combina na perfeição com o .

No , diz o povo na sua imensa, embora nem sempre perceptível, sabedoria. E que melhor sítio para ir à adega e provar o vinho novo do que este onde nos encontramos? Designada a capital do , Vila de Frades carrega a história e a tradição dos vinhos feitos pelo processo herdado dos romanos, primeiro, e dos frades de S. Cucufate, depois. Hoje, e como diz a canção, a vila já não tem abades, “mas tem adegas que são catedrais”. Concentremo-nos, que vai começar a liturgia.

VINHO DE TALHA

Em Vila de Frades, celebra-se S. Martinho com vinho de talha nas adegas Gerações da Talha
Em Vila de Frades, celebra-se S. Martinho com vinho de talha nas adegas Gerações da Talha Foto: DR

Num espaço exíguo, rodeada de enormes talhas – os desatentos chamar-lhes-ão ânforas; os desinformados dirão que são potes grandes; não são nem uma, nem outra coisa: são talhas, recipientes de barro, estreitos em baixo, que se vão alargando à medida que se sobe, configurando um grande bojo antes de voltarem a estreitar-se abruptamente no pescoço, que fica logo abaixo da boca –, Teresa Caiero explica, muito rápida e resumidamente, como se faz este vinho de tradição milenar. “Como podem ver, não é nada científico”, diz.

Teresa, produtora e proprietária da Gerações da Talha, afirma-o com humildade, mas também subestimando a imensa ciência que existe num método que dispensa medições milimétricas, horários demasiadamente rigorosos, e outros constrangimentos ao nascimento livre de vinhos. Se é assim que se faz e se o vinho nasce bem, então é porque o processo já foi de tal maneira afinado, depurado, assimilado e reproduzido, que dispensa exageros no controlo dos procedimentos. Não é falta de ciência, é antes a demonstração que a ciência foi muitíssimo bem aplicada, ao ponto de nem termos de pensar nela.

Adega Gerações da Talha, em Vila de Frades
Adega Gerações da Talha, em Vila de Frades Foto: DR

E o processo é o seguinte: a uva, depois de desengaçada, no moinho ou manualmente, vai para dentro da talha. E fica lá quieta. Ao fim de dois, três dias, começa lá dentro um misterioso borbulhar. Começou a fermentação. Com a transformação do açúcar em álcool, as massas – as grainhas, as películas, os componentes sólidos das uvas – são atiradas para cima, formando uma película dura, deixando o vinho no fundo. Essa película vai impedir que o dióxido de carbono produzido durante a fermentação alcoólica se liberte do recipiente, e é por isso que, neste ponto, é necessário “mexer as talhas”: quebrar o manto e remexer o líquido, atirando as massas de novo para o fundo da talha.

Esta é, apesar das diferenças de procedimentos, uma forma de remontagem. Teresa Caeiro explica que este vinho está em permanente contacto com o oxigénio – daí que as talhas, que são cheias com as massas até ao bojo, tenham de ser atestadas, elevando o conteúdo até junto à boca, garantindo assim que a superfície em contacto com o oxigénio é tão reduzida quanto possível.

ABRAM-SE AS TALHAS!

É precisamente na adega da Gerações da Talha que . Provemos o vinho. João Enteiriço, marido de Teresa e responsável pela adega e pelo “mexer das talhas”, faz as honras: com uma torneira de madeira e socorrendo-se de um martelo apropriado, empurra o batoque que obstipava o orifício no fundo da talha e, voilà, um pequeno milage: o vinho começa a correr para dentro de um alguidar.

João Enteiriço, a abrir uma talha para a prova do vinho de talha
João Enteiriço, a abrir uma talha para a prova do vinho de talha Foto: DR

Primeiro vem turvo, muito turvo. “O vinho ainda está a furar pelo meio das massas, vai fazendo o seu caminho”, explica Teresa. Essas massas servem de filtro natural ao vinho novo. Ao fim de alguns minutos, o vinho que escorre, por um fio, da torneira é já muito mais límpido do que aquele líquido acastanhado inicial. Os pequenos copos tradicionais do vinho de talha – cálices sem pé, como aqueles que dantes se encontravam nas verdadeiras tabernas, sobre balcões de pedra já gastos – ostentam agora um vinho amarelo, brilhante. Um vinho magnífico: puro, aromático, sem adornos nem acrescentos, feito de uva e apenas uva.

Entre os petiscos e as provas, ouve-se a voz de João: “Vamos abrir outra.” Outra talha, entenda-se. E logo todos os presentes se aproximam e tentam registar o momento de telemóvel em punho (numa mão; na outra, um pedaço de pão com paio, ou queijo, ou ambos – ou um copo de vinho cheio). “Esta é tinta.” E logo se repete o processo: martelo, torneira, batoque lá dentro e um fio de vinho tinto correndo para um alguidar, como se a talha sangrasse. Brindamos. Provamos. Que maravilha. “O tinto é ainda melhor do que o branco”, exclama alguém. As opiniões dividem-se. Uma coisa é certa: são ambos excelentes. Este vinho tinto novo tem um gigantesco potencial de evolução. João Enteiriço diz que tem planos para ele, mas não entra em detalhes. Confiamos no seu bom-gosto e no seu saber.

O ALMOÇO

Depois de uma manhã em que as provas foram sendo feitas com o aconchego do pão da e os queijos e enchidos da região, é preciso agora forrar o estômago, fazê-lo robusto, prepará-lo para uma tarde longa de magusto, de visita às adegas de Vila de Frades, para provar mais vinhos ao som do . O cozido de grão chega à mesa em taças generosas e fartas, os aromas invadem as mesas, que se espalham entre a adega e o pátio da Gerações da Talha.

As vozes tonitruantes do grupo de cante ecoam pelo espaço. Brinda-se com o vinho o novo. O sol de outono brilha sem queimar. Podíamos estar num cenário da Toscana, apreciando o que há de melhor nesta vida, convivendo e rindo, comendo e bebendo com prazer. Mas estamos , e isso não faz diferença nenhuma. Aqui a vida também é bela, tanto ou mais do que nos cenários toscanos e idílicos. E então percorre-nos uma extraordinária sensação de pertença e de gosto, pensamos “caramba, isto é nosso”, e quase nos comovemos, com felicidade e orgulho. A vida pode ser deliciosa.

Em Vila de Frades, celebração do S. Martinho com vinho de talha da Gerações da Talha
Em Vila de Frades, celebração do S. Martinho com vinho de talha da Gerações da Talha Foto: DR

POR VILA DE FRADES

Findo o repasto, os convivas levantam-se com lentidão e a custo. “Isto agora pedia uma sesta”, brinca-se. Mas há que avançar, o S. Martinho só acontece uma vez por ano e o vinho novo não espera. Há mais adegas para descobrir. Na primeira em que paramos, logo na rua a seguir àquela onde almoçámos – aqui, as adegas são numerosas: segundo Teresa Caeiro, existem cerca de 50 produtores de vinho de talha em Vila de Frades, pelo que o difícil é não encontrar uma –, não se faz vinho. Já se fez, em tempos, antes de surgir “a cooperativa”, depois foi-se perdendo o hábito e o gosto. Ficaram os objetos e o espaço, que servem para ajudar a que os de agora melhor compreendam como era antigamente.

Neste pequeno museu informal, onde a mesa comprida ocupa logicamente o espaço central, vemos as talhas, mais de uma dezena, de vários tamanhos. “Não estão vazias”, diz o proprietário, que faz também de guia neste passo da visita, “elas têm pelo menos ar, e talvez algumas teias de aranha”, concretiza, com boa disposição, levando ao riso geral.

Aprendemos, ainda, que a formação “da cooperativa” – a Adega Cooperativa de Vidigueira, Cuba e Alvito – veio, naturalmente, ajudar os pequenos produtores, mas, por outro lado, levou a um progressivo abandono da tradição do vinho de talha. De repente, pessoas que faziam o seu vinho na própria adega, respeitando o método ancestral deixado pelos romanos, podiam simplesmente cuidar da vinha e colher a uva, depositando-a na Cooperativa e arrecadando o quinhão que lhes cabia. Menos trabalho, mais conforto, pagamento certo: num ápice, talhas tornaram-se inúteis e começaram a ser destruídas para fazer pavimentos e paredes.

Almoço com vinho de talha em Vila de Frades, Alentejo, tradição e convívio
Almoço com vinho de talha em Vila de Frades, Alentejo, tradição e convívio Foto: DR

Foi mais tarde, há cerca de 25 anos, que se iniciou um movimento de regeneração do vinho de talha, com o surgimento da Vitifrades, um concurso local entre pequenos produtores para se eleger o melhor vinho novo do ano. Hoje, com a talha perfeitamente reabilitada e de excelente saúde – o número de produtores certificados e a qualidade dos seus vinhos atesta bem da sua vitalidade –, a Vitifrades é diferente, tornou-se uma feira de vinho de talha cujos moldes pouco diferem de outras feiras de vinho. Mas, à época, desempenhou um papel absolutamente vital, ao impedir que esta tradição milenar se perdesse.

Saímos desta adega e, na mesma rua, 20 metros adiante, outra adega prepara o seu magusto. É a Taberna dos Arcos, da Adega Cooperativa, um espaço impressionante, onde encontramos a mais antiga talha que se conhece na região, datada do século XVII. Ainda hoje faz vinho, como fazia há quase 400 anos. Aqui, não entramos, caminhamos mais 30 metros e vamos à seguinte. É uma adega pequena, modesta, claramente vocacionada para produzir pouco e para quem é da casa. Não tem pretensões comerciais. Prova-se o vinho. É distinto dos anteriores. E é notável como a diferença e os cuidados no decorrer do processo podem fazer tamanha diferença entre vinhos que são feitos com uvas semelhantes, de vinhas semelhantes, em terroirs cuja composição é aproximadamente a mesma. Enquanto se prova, ouve-se o cante, agora com a presença de uma voz feminina – sai trémula, “estou entupida”, queixa-se a cantadeira. Bebemos mais um copo. Importa é não perder o alento.

Mais umas dezenas de passos, vira-se a esquina, outra adega aberta – aberta, mas ocupada, com outra visita. “Esta é uma clássica de Vila de Frades”, explica alguém. É a Adega de Justino Damas. Não provamos hoje o vinho, fica para uma próxima. Mas não tardamos a parar e a entrar. Agora, não é uma adega, esta é uma taberna: a Taberna do Enteiriço – de João Enteiriço, que, como vimos, também faz vinhos –, onde encontramos tudo o que o nome promete, num espaço renovado com bom gosto, onde a remodelação não significou, felizmente, a substituição do que é genuíno pelo que é moderno.

Os traços antigos estão todos lá, dos tampos de mármore nas mesas aos bancos de madeira, dos arcos em tijolo burro às paredes rebocadas à colher, tudo pintado de branco. Um sítio novo, “inaugurado há coisa de um ano”, que nos permite imergir numa realidade passada, de tempos lentos e chão de tijoleira. É na Taberna que provamos vinhos de talha engarrafados. São as versões anteriores dos vinhos que provámos de manhã e ao almoço, na Gerações da Talha. Sem surpresa, são vinhos vivaços, mas muito saborosos e até delicados. Na Talha, branco, tinto e palhete, Farrapo branco e Farrapo tinto, todos eles merecem nota de excelência. Contudo, é o Atão, Vás Tinto? quem, pela originalidade e pelo arrojo, conquista mais corações e palatos. Será um palhete? Será um clarete? Será um rosé? “Não é nenhum dos casos”, explica João. “É um vinho branco, exclusivamente feito com Antão Vaz.” Ok, mas então e a cor e este sabor, com twist? “Escolhemos uma talha de vinho tinto de excelência, de Alfrocheiro. Depois de esvaziada, voltámos a depositar lá as massas, já sem vinho. Em seguida, adicionámos o vinho de Antão Vaz e fizemo-lo passar pelas massas do Alfrocheiro. O resultado é este vinho branco filtrado em massas tintas.” É tão criativo e surpreendente quanto delicioso. Um verdadeiro refresco, mesmo numa tarde de outono.

Em Vila de Frades, prove o vinho de talha e celebre o S. Martinho com tradição e alegria
Em Vila de Frades, prove o vinho de talha e celebre o S. Martinho com tradição e alegria Foto: DR

ATÉ PARA O ANO!

Continuemos, que a visita está quase a terminar. Descemos a rua e cumprimentamos vizinhança – o País das Uvas, restaurante típico que possui, numa cave anexa, a Cella Vinaria Antiqua (vale muito a pena a visita, que permite compreender como era aqui uma adega há mais de mil anos; e também vale a pena conhecer os vinhos Honrado, feitos nas talhas espalhadas pelo restaurante), acolhe também a celebração do S. Martinho – e prosseguimos. “A próxima é a Adega Horta Abaixo.” E é aí que encontramos José Miguel Caeiro e as suas criações singulares. A adega, apesar de singela, quase austera, tem tudo o que é preciso: uma mesa comprida ao meio, talhas em redor, junto às paredes, e duas torneiras com vinho a correr, uma de branco, outra de tinto. “Foram abertas ontem, tanto uma como a outra.” O proprietário – produtor, viticultor e enólogo – antecipou a abertura para garantir que o vinho correria limpo quando chegassem as visitas.

“Que pomada!” A qualidade, tanto do branco como do tinto, impressiona os convivas. Há perguntas, querem saber se está à venda. Está, mas não há garrafas. “Este não é engarrafado”, diz o produtor. “Ainda”, e depois ri-se. Haverá planos; os planos não foram revelados.

Os homens do cante chegam-se à mesa, que é o centro de tudo e onde os petiscos aguardam. Canta-se de novo, “Vila de Frades já não tem abades, mas tem adegas que são catedrais”. Soa como um hino – não um hino patriótico, mas a canção de uma gente, de uma comunidade, de uma tradição. Canta-se com orgulho, de peito e barriga cheios. A visita está a terminar, “para o ano há mais”. Nas torneiras, os vinhos novos correm de fininho para os alguidares, à espera que alguém encha os jarros pousados na mesa. Há quem prometa voltar. Há até quem queira ficar.

PARA TODOS

Para quem quiser viver a experiência da prova dos vinhos novos no S. Martinho, abre as suas portas nos dias 14, 15 e 16 de novembro e disponibiliza vários tipos de programa, que incluem provas à porta fechada, rotas das adegas, celebração com petiscos tradicionais e bar de vinhos, entre outras atividades cujo epicentro é o vinho de talha novo.

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