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Ole Martin Siem: “O que mais me preocupa é a crescente burocracia e a falta de verdadeira liderança entre os políticos de hoje”

A revolução discreta que Ole Martin Siem protagoniza em Portugal há mais de 40 anos não lhe trouxe muita visibilidade pública. O norueguês produz legumes e plantas na costa alentejana e foi dos primeiros a colocar a região no mapa com o vinho da marca Vicentino.

Ole Martin Siem chegou ao Alentejo na década de 1980
Ole Martin Siem chegou ao Alentejo na década de 1980 Foto: DR
05 de setembro de 2025 | Augusto Freitas de Sousa

Cresceu na Noruega, tornou-se um importante produtor e investidor, e atualmente tem negócios em vários países. Como se descreveria a si próprio? 

Vejo-me, antes de tudo, como um produtor. Embora tenha feito investimentos ao longo dos anos, a minha paixão é construir, cultivar e criar algo do zero. Estou profundamente envolvido na terra, na produção e nas pessoas por trás do processo. Acredito em contribuir ativamente, não apenas financeiramente, mas com visão, compromisso e envolvimento prático. É isso que me define muito mais do que o título de investidor. 

Quais são os seus negócios?  

Para simplificar e manter o foco nas áreas em que estou ativamente envolvido como produtor, e não apenas como investidor, as minhas operações comerciais abrangem Portugal, Colômbia e Noruega, principalmente na agricultura, produção alimentar e desenvolvimento de terras. Em Portugal a empresa principal é a Frupor com três subsidiárias, uma das quais a Adega Vicentino, dedicada à produção e venda de vinhos. Na Noruega a empresa-mãe é a Oretun AS. 

Ole Martin Siem
Ole Martin Siem Foto: DR

É norueguês e cresceu no país. Como foi a sua infância? 

Nasci em Oslo, mas em contacto próximo com a natureza e tive uma educação livre, calorosa, mas rigorosa. Só tenho boas recordações de um mundo muito diferente do atual. 

Como era a sua família?  

Era o mais novo de cinco irmãos. O meu pai era diretor da maior empresa da Noruega na época, o Aker Group, e a minha mãe era uma senhora inteligente, com reflexões equilibradas sobre muitos aspetos importantes da vida. Além da família próxima, tínhamos uma família enorme com tios, tias e primos com quem também mantínhamos contacto próximo. 

Tinha alguma ligação com a vida rural quando era jovem?  

Embora tenha crescido em Oslo, estava numa zona rural com muitas quintas na vizinhança onde o leite era entregue à porta com cavalo e carroça. 

Qual é a sua formação académica?  

Licenciatura em Agricultura e também em Economia Agrícola. 

Vicentino, vinhas da Costa Atlântica
Vicentino, vinhas da Costa Atlântica Foto: DR

Houve alguém com uma influência decisiva na sua visão de mundo?  

Sem dúvida os meus pais e a minha família tiveram a maior influência na minha forma de ver o mundo. Incutiram em mim uma forte ética de trabalho, um senso de responsabilidade e a crença de que devemos sempre tentar deixar as coisas melhores do que as encontramos. Os seus valores moldaram não só a minha abordagem aos negócios, mas também a minha relação com as pessoas, a natureza e o pensamento a longo prazo. Essa base tem-me guiado ao longo da minha vida. 

E o que moldou a sua visão?  

Desde muito jovem, preocupava-me profundamente com o ambiente e o impacto da poluição. Isso levou-me a ser um dos pioneiros da agricultura biológica na Noruega, motivado pelo desejo de produzir alimentos de forma responsável e sustentável. Com o passar do tempo, outra questão tornou-se igualmente importante para mim: a disponibilidade de informações precisas e a responsabilidade dos meios de comunicação social. Acredito que uma sociedade bem informada é essencial para a democracia e o progresso, e tenho-me tornado cada vez mais consciente de como a desinformação e as notícias tendenciosas podem moldar a opinião pública e as políticas de forma perigosa. Tanto a gestão ambiental como a verdade na comunicação continuam a moldar a forma como vejo o mundo hoje. 

Como era a sua carreira profissional antes de investir em Portugal?  

Dedicava-me inteiramente à gestão da minha exploração agrícola na Noruega. Essa experiência deu-me uma base sólida na agricultura, tanto do ponto de vista técnico como de gestão. Também me ensinou a importância do planeamento a longo prazo, da sustentabilidade e da adaptação às condições em mudança. Tudo isto tornou-se valioso quando mais tarde aceitei o desafio de desenvolver projetos agrícolas e de exploração no estrangeiro. 

Adega Vincentino
Adega Vincentino Foto: DR

Como conheceu o Sudoeste Alentejano? Como foi o processo?  

No início, explorei partes de Espanha perto da fronteira com Portugal, mas rapidamente decidi que Portugal era a melhor opção. A minha família tinha amigos que cultivavam cravos em Setúbal e fui visitá-los, mas acabei por decidir continuar para sul, em direção ao Algarve. No entanto, por várias razões, incluindo a dimensão das explorações agrícolas e a disponibilidade de água, comecei a procurar mais a norte, na costa ocidental. Foi então que descobri o Sudoeste Alentejano. Fiquei fascinado pelos canais de água provenientes de Santa Clara, que na altura eram a única infraestrutura da região. A área era muito tradicional, alguns pequenos agricultores ainda lavravam os seus campos com bois e cultivavam batata-doce e produções semelhantes. Mas, em vez de ver limitações, vi oportunidades, espaço para inovação, crescimento e desenvolvimento agrícola real. Esse foi o início, em 1984, do que viria a ser uma jornada longa e transformadora. 

Quais foram os maiores riscos que enfrentou neste processo?  

Um dos maiores desafios foi o facto de a agricultura moderna e em grande escala ser praticamente desconhecida na região. Não existia uma indústria de abastecimento para apoiar o tipo de produção que eu imaginava, nem acesso ao equipamento, ajuda ou serviços técnicos necessários. Além disso, o panorama político e burocrático apresentava riscos significativos, incluindo corrupção e falta de transparência. O clima, embora promissor, ainda não tinha sido comprovado como adequado para a escala e o tipo de agricultura que eu planeava, o que também trazia incerteza. Além disso, a área carecia de infraestruturas básicas e não havia mão de obra agrícola qualificada disponível. Foi realmente um salto para o desconhecido, mas dado com visão, persistência e crença no potencial a longo prazo. 

Desenvolveu a Frupor, mas a vinha veio depois… 

Desde o início, concentrei-me em cultivar produtos que tivessem uma vantagem natural no nosso terroir e um forte potencial de mercado no norte da Europa. A certa altura, tínhamos terrenos em encostas com solo mais pesado e rochoso, que não era adequado para as nossas principais culturas. As uvas para vinho tornaram-se uma alternativa para essas terras, mas inicialmente eu estava muito cético. A viticultura era totalmente diferente do que fazíamos, e o mundo do vinho é notoriamente competitivo.  

Vinhas Vincentino
Vinhas Vincentino Foto: DR

Há algo na cultura nórdica que trouxe consigo para este projeto no Alentejo?  

Estava na Noruega para fazer a diferença e contribuir para a mudança. Todas as pessoas com quem falei, em Portugal e fora, disseram-me que este era um projeto impossível, e a principal razão era porque nunca tinha sido feito antes. Para implementar algo novo, é preciso mudar a velha forma de pensar. Obviamente, trouxe comigo o know-how e a tecnologia da Noruega e do norte da Europa. Mas ainda mais importante foi o meu estilo de gestão, compreendendo que são os seres humanos o maior trunfo e que fazem a diferença. Não houve um “eu”, o foco foi em nós como equipa em que usámos os nossos pontos fortes e apoiámo-nos nos pontos fracos. Persistência, foco e disciplina eram conceitos novos para esta área há 40 anos.  

Como responde às críticas de que os grandes investidores estão a alterar demasiado a paisagem da Costa Vicentina?  

Já me deparei com essa realidade. Os turistas de Lisboa, por vezes, visitam a região nos seus BMWs e queixam-se de que já não é como antigamente quando havia pequenos agricultores, alguns porcos e galinhas. A minha resposta é sempre: “Está a dizer-me que gosta de vir aqui para ver pessoas a viver abaixo do limiar da pobreza, a lutar para sobreviver, como se estivesse a visitar um jardim zoológico?” A nova geração de agricultores da região proporcionou oportunidades de emprego alternativas, permitindo que as pessoas vivessem com dignidade. Dito isto, a Frupor tem sido ambientalmente consciente desde o início. Fizemos um grande esforço para garantir que as nossas operações fossem realizadas de forma a preservar a beleza estética da paisagem. Também recebemos o público para visitar a fazenda – eventos como o “Run for Life” permitem que as pessoas experimentem e desfrutem da fazenda por dentro. A agricultura inclui um elemento cultural. E, muitas vezes, colinas onduladas de vinhedos são mais bonitas do que matagais áridos. 

Empregam pessoas da região? Como integram a comunidade local no vosso projeto?  

Sempre empregámos pessoas da região e integrar a comunidade local tem sido uma parte essencial do projeto desde o início. Não criamos apenas empregos, cuidamos das nossas pessoas e assumimos uma responsabilidade a longo prazo pelo seu bem-estar e desenvolvimento. Na verdade, o meu primeiro funcionário reformou-se a 1 de agosto, após 40 anos de serviço leal. Isso diz muito sobre o tipo de relações que construímos. Acreditamos no crescimento conjunto, no apoio às famílias locais, na partilha de conhecimentos e na criação de oportunidades que beneficiem não só o negócio, mas toda a comunidade. 

Adega Vincentino
Adega Vincentino Foto: DR

Quanto tempo passa em Portugal?  

Cerca de 30% do meu tempo. 

Como vê o mercado vinícola português hoje e nos próximos 10 anos?  

Hoje, o mercado vinícola português está a ganhar um merecido reconhecimento internacional. A qualidade melhorou significativamente nas últimas décadas e há uma apreciação crescente pela diversidade de castas autóctones e estilos regionais. Portugal já não é apenas um produtor de vinho do Porto, está a ser reconhecido pelos seus tintos vibrantes, brancos elegantes e enólogos inovadores. Acredito que os próximos 10 anos trarão oportunidades e desafios. Por um lado, a procura global por vinhos únicos e autênticos está a crescer, e Portugal está bem posicionado para atender a essa procura. Por outro lado, os produtores precisarão de se adaptar às alterações climáticas, à evolução das preferências dos consumidores e ao aumento da concorrência. Sustentabilidade, narrativa e qualidade serão fundamentais. Também vejo mais colaboração entre regiões e produtores e, espero, uma identidade de marca internacional mais forte para o vinho português como um todo. Se nos mantivermos focados na excelência e na inovação, respeitando a tradição, o futuro é muito promissor. 

Qual é o seu principal objetivo com este projeto? E o seu maior receio?  

O meu principal objetivo é construir uma marca e um negócio sólidos, sustentáveis e benéficos para todas as partes interessadas, agora e para as gerações futuras. Quero que este projeto crie valor duradouro, não só economicamente, mas também cultural e socialmente. Se, ao longo do caminho, também pudermos inspirar os produtores de vinho portugueses a pensar de forma diferente, a inovar e ajudar Portugal a ganhar uma presença mais forte no mercado internacional do vinho, isso seria um resultado fantástico. O meu maior receio? Que o pensamento de curto prazo ou as pressões externas possam comprometer o potencial a longo prazo. Construir algo significativo requer tempo, consistência e paciência – qualidades que, por vezes, estão em desacordo com o mundo acelerado de hoje. Receio perder de vista essa visão de longo prazo, porque é essencial para criar algo que realmente perdure. 

Vicentino, vinhos da costa alentejana
Vicentino, vinhos da costa alentejana Foto: DR

Qual foi o momento mais marcante? 

O momento mais memorável foi quando comecei a compreender verdadeiramente o terroir único da nossa região e a geologia subterrânea que a sustenta. Esta área forma um triângulo verde distinto, visível no Google Maps, o que é fascinante porque este mesmo triângulo está marcado por menires – monumentos de pedra com três metros de altura ou mais – que estão aqui há mais de 6 mil anos. Perceber esta ligação profunda entre a terra, a sua história e o nosso projeto tornou a jornada incrivelmente significativa. 

O vinho ensinou-lhe alguma lição importante?  

Talvez não uma lição de vida no sentido tradicional, mas o vinho ensinou-me a cheirar e saborear verdadeiramente. Estes são sentidos que muitas vezes ignoramos e que não fazem parte da maioria das formações académicas. Ao contrário das cores, que podemos descrever com precisão, muitas vezes não temos vocabulário para expressar sabores e aromas. Aprender a treinar os meus sentidos e prestar muita atenção a essas sutilezas abriu um mundo totalmente novo para mim. Isso tornou-me mais presente, mais curioso e mais apreciativo, não apenas do vinho, mas dos detalhes mais subtis da vida. 

Como lida com o ritmo lento e imprevisível do mundo agrícola?  

Aprende-se a respeitar o ritmo da natureza, que não segue a nossa agenda. A agricultura ensina paciência e humildade. As coisas levam tempo e o resultado nunca está totalmente sob o seu controlo. Em vez de lutar contra o imprevisível, trabalha com ele, mantém-se flexível e confia no processo. No final, é o ritmo lento que traz profundidade e significado ao trabalho. 

vinho Vicentino
vinho Vicentino Foto: DR

O que gostaria que as pessoas dissessem sobre si um dia, num brinde feito com o seu vinho?  

Gostaria que as pessoas levantassem os seus copos e dissessem: “Ele deu o seu melhor – e o melhor é suficiente!” Porque, no final de contas, não se trata de perfeição, mas de paixão, esforço e permanecer fiel aos valores. Se o meu vinho une as pessoas e conta essa história, então fiz algo que valeu a pena. 

Se tivesse de fazer um brinde com um dos seus vinhos hoje, a quem ou ao que brindaria?  

Levantaria a taça com toda a minha equipa, agradecendo-lhes pela jornada que partilhámos ao longo dos anos. Tanto nos dias bons como nos dias difíceis, permanecemos juntos e também partilhámos a profunda satisfação que vem com cada conquista. Este brinde seria pela sua dedicação, resiliência e espírito, que nos mantêm a avançar. 

Como vê a atual situação? Tem uma opinião sobre guerras (tarifárias e outras), alterações climáticas, extremismo...  

Tenho opiniões fortes sobre várias questões. O que mais me preocupa é a crescente burocracia e a falta de verdadeira liderança entre os políticos de hoje. Muitas vezes, as decisões políticas são motivadas pela popularidade a curto prazo e pelo desejo de ser reeleito. Mas os verdadeiros líderes são aqueles que têm a coragem de fazer escolhas difíceis, às vezes impopulares – porque são as certas para o bem da sociedade a longo prazo. 

Está a par dos acontecimentos atuais em Portugal? Como vê a situação atual do país?  

Sim, acompanho de perto os acontecimentos. Tal como muitos países, Portugal enfrenta desafios complexos – desde pressões económicas e escassez de habitação até instabilidade política. Embora haja motivos para preocupação, também vejo resiliência e potencial. Temos uma geração mais jovem talentosa, uma identidade cultural forte e um reconhecimento internacional crescente em setores como a agricultura, a tecnologia e o turismo. Com a liderança certa e uma visão a longo prazo, acredito que Portugal pode transformar as dificuldades atuais em oportunidades para um progresso significativo. 

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