O luxo já não é o que era?
Agora que a supremacia tecnológica tudo baralha para voltar a dar, como fica a definição clássica do luxo? Sobrevive blindado ou reinventa-se com novos valores? Fomos perguntar a uma especialista no tema, Helena Amaral Neto.
Vivemos um momento de contradições. Numa altura em que se fala tanto no regresso às origens e à manufatura, num claro contraponto à globalização e à rapidez tecnológica, que tem vindo a nivelar a sociedade, qual passa a ser o lugar do luxo? Mantém o seu trono superlativo, incensado e genial, ou democratiza-se, perdendo o elitismo e a reserva para se aproximar da maioria, mas também algum carisma e mistério? Helena Amaral Neto, há 12 anos coordenadora dos cursos executivos de Gestão do Luxo no ISEG - Instituto Superior de Economia e Gestão, também pertence ao conselho consultivo da LAUREL - Associação Portuguesa de Marcas de excelência e é sócia-fundadora da Luxulting, uma empresa de consultoria focada em branded residences, que trabalha com marcas icónicas no mundo como a Aston Martin, Giorgio Armani, Missoni, Fendi ou Pininfarina. Fomos saber mais.
Em termos históricos, quando é que se começa a falar de luxo ou a usar esse conceito?
O conceito de luxo acompanha a civilização desde os seus primórdios. Podemos recuar ao Antigo Egito, ao Império Romano ou às cortes europeias do século XVII para encontrar manifestações materiais e simbólicas do luxo. No entanto, enquanto conceito sistematizado e objeto de estudo, o luxo começa a ganhar relevo nos séculos XVIII e XIX, quando se torna um sinal de distinção social e um símbolo de poder, sobretudo na sociedade aristocrática europeia.
E qual a diferença entre luxo e riqueza?
A riqueza está relacionada com a posse de bens materiais, de poder económico. O luxo, por sua vez, é um conceito totalmente personalizado. Depende da cultura, da religião, da geografia, da geração. Luxo para uma avó portuguesa é muito diferente de luxo para uma jovem saudita. E preciso riqueza para ter luxo? Não e sim. A avó que convida os netos para uma viagem especial de balão valoriza a experiência diferenciadora em família. Para a mulher saudita, a compra de uma joia Cartier ou Tiffany simboliza a sua independência, o seu status social. A diferença está no conceito individual de cada uma - experiência ou produto, serviço ou marca reconhecida, valor mais ou menos acessível. Quando passamos de conceito para estratégia de luxo, entramos no mundo valioso das marcas de luxo. Aqui sim, o mercado de luxo cria riqueza, e muita. Só em 2024, o valor global das vendas do mercado de luxo atingiu 1,48 triliões de euros - este valor inclui todos os setores, desde o automóvel à moda e beleza. Apesar desta fase atual de instabilidade, as perspetivas para este mercado são muito positivas. Porque, como diria Bernard Arnault, fundador e chairman do Grupo LVMH, "só no luxo é que há margens de luxo".
Como está a evoluir o mercado de luxo?
O mercado de bens pessoais de luxo atingiu vendas globais de €363 mil milhões em 2024, um decréscimo de 2% versus 2023. Estes são os dados do recente estudo da Bain-Altagamma, que mostram a primeira contração do mercado em 15, anos (salvo a exceção do período covid). Fruto de uma combinação de instabilidade económica, e uma subida acentuada dos preços das marcas de luxo, os clientes de luxo reduziram as suas compras. Porém, os clientes não são todos iguais. Dos cerca de 350 milhões de clientes, o topo desta pirâmide tem um peso desproporcionado. Os clientes do Top 5% representam cerca de 40% das vendas no mercado de luxo. Ou seja, há uma grande concentração do volume de negócios do luxo nos clientes de topo. E uma crescente polarização nas marcas que estão focadas nestes clientes VVIC (very very important client), com estratégias de longo prazo.
O mercado do luxo é mesmo o mais resiliente?
Historicamente, o setor do luxo tem demonstrado resiliência. Crises económicas ou políticas não o afetam da mesa forma que outros setores. No entanto, momentos como a pandemia ou instabilidades geopolíticas prolongadas podem provocar quebras no consumo, sobretudo nas categorias mais acessíveis dos clientes aspiracionais. É o que se está a passar neste momento. com so milhoes de clientes deste nível de entrada a sairem do mercado. A resiliência tamber varia muito consoante as estratégias das próprias marcas. As marcas de topo, mais exclusivas, continuam a crescer mesmo em condições adversas para o setor como um todo.
"Luxo não é o oposto da pobreza, é o oposto da vulgaridade", dizia Coco Chanel. A democratização dos seus códigos não estará a fazer exalamenle o contrário?
É uma reflexão pertinente. Concordo que a atribuição do termo "luxo" se tem vindo a banalizar, em grande parte devido à massificação do acesso ao luxo dos últimos 20 anos, que teve um efeito muito positivo no crescimento e no valor das marcas de luxo. Esta democratização fez triplicar as vendas globais das principais marcas, de tal forma que a Hermès e o grupo LVMH (com as suas 75 marcas, incluindo Louis Vuitton, Dior, Möet&Chandon) são das empresas mais valiosas da Europa. As marcas focaram-se nos clientes mais aspiracionais, com categorias mais acessíveis, para novos públicos - tais como as fragrâncias e a beleza. Quem sonha com Chanel pode aceder à magia deste mundo através de um frasco de perfume N.º 5 ou de um batom, que por sua vez alimenta a vontade de comprar a icónica [carteira] 2.55. Esta estratégia de crescimento acelerado tem riscos - a perda da exclusividade, do mistério, até da qualidade - valores fundamentais para o luxo. O desafio permanente de qualquer marca de luxo é este equilíbrio delicado entre expansão e exclusividade entre inovação e tradição, entre criatividade e identidade, entre imaginação e negócio. Neste momento, assistimos à valorização das marcas mais exclusivas, Hermès, Loro Piana, Brunello Cucinelli, The Row, em detrimento das marcas mais "democráticas" como Gucci e Louis Vuitton. devido o arrefecimento no setor. O luxo é um pouco como a arte: não sendo essencial, é o que dá cor à vida, e isso contribui para o seu fascínio. Acredito que a arte, nos seus vários formatos, é absolutamente fundamental para a vida. E o luxo, enquanto conceito de mundo do sonho, é igualmente essencial. Por curiosidade, estou a frequentar várias formações em História de Arte há três anos, e o que começou com uma viagem pela estética e perceção do "belo" tem-se vindo a revelar muito mais abrangente. Daí discordar de que a arte, tal como o luxo, não é essencial. Através da arte podemo-nos compreender melhor. Através do luxo, podemos sonhar.
Existem objetos que, por muita qualidade que tenham, jamais poderão ser considerados luxo?
Não. A perceção do que é luxo é profundamente pessoal, por isso varia consoante quem olha para o objeto. Quando falamos de marcas de luxo, o critério é outro. A qualidade nunca é assunto, a excelência é um requisito fundamental de qualquer produto ou serviço. Como são também a criatividade, o savoir-faire, o tempo, a longevidade, a intemporalidade, o significado, a narrativa, o storytelling...
E a sustentabilidade e o luxo podem ser afins?
Devem ser. O verdadeiro luxo é durável, feito com rigor e respeito pelo tempo e pelas matérias-primas. E pensado para o futuro, como afirma o slogan da icónica marca relojoeira "You never actually own a Patek Philippe. You merely look after it for the next generation". Assistimos a uma consciência ESG - Environmental. Social and Governance - cada vez. mais transversal nos vários setores do luxo. A joalharia e a relojoaria são diferentes da moda e acessórios. Na moda, e sobretudo no fast fashion, o impacto ambiental é muito relevante, e as marcas de luxo estão ativamente a trabalhar para reduzirem esta pegada, muitas já definiram objetivos carbono zero nas suas estratégias. Como diz Jean Cassegrain, CEO da Longchamp: "The first way to help the environment is to have products that last a long time." Confirmo, as minhas carteiras Longchamp continuam fiéis companheiras, passados vários anos e, com a devida manutenção, espero deixá-las para serem usadas pelas minhas filhas. Outra forma de reduzir o impacto sobre o planeta é produzir menos, e dar mais vida aos produtos existentes. O mercado de segunda mão, também conhecido por preloved, está a explodir, com vendas esperadas de 300 mil milhões de euros esta década. As plataformas RealReal e Vestiaire Collective surgiram para dar nova vida a tudo o que está esquecido no armário. É um mercado que promove a circularidade e a longevidade de produtos que são feitos para durar. Algumas marcas de luxo estão a adotar esta oferta, que permite revender a mesma peça em vez de produzir peças novas. A grande aliada deste processo é a tecnologia, sobretudo blockchain, que permite monitorizar os produtos ao longo de todo o ciclo de vida. com controlo de origem e autenticidade.
Os valores do luxo mantêm-se num mundo tecnológico?
A tecnologia não substitui os valores clássicos do luxo, mas obriga as marcas a reinventar a forma como os entregam. A inovação tecnológica permite o uso de ferramentas poderosas - sobretudo inteligência artificial para melhorar todo o negócio do luxo, desde as cadeias de fornecimento à experiência do cliente. Num mundo cada vez mais digital, maior é a importância do fator humano e sensorial na experiência do luxo. Daí que vemos as marcas de luxo a adaptarem-se a estes novos requisitos que valorizam o tempo, o espaço, a relação humana, o entretenimento e o conhecimento. Assistimos a uma aposta forte na loja física (em detrimento do e-commerce). com investimentos avultados na abertura de novas lojas. renovação de lojas flagship com áreas exclusivas para clientes WIC. Estes espaços assumem-se como locais de culto da marca, e as marcas cada vez mais se posicionam coo ícones culturais.
E como sobressair no meio de tanta oferta? Qual a definição do luxo moderno?
O caminho passa pela construção contínua da marca, uma estratégia de longo prazo que combina inovação com autenticidade. E sempre com uma abordagem nova, moderna, que surpreenda pela criatividade. É fundamental manter a marca contemporânea, mesmo que tenha 100 ou 200 anos. Sem compromisso dos seus valores. É aqui que está a arte da gestão do luxo. No luxo moderno, há uma valorização crescente do raro, do artesanal, do local. da exclusividade emocional, da conexão humana. Menos logótipo, mais alma.
A emoção está a sobrepor-se ao racional na relação com o luxo?
Sim. Sempre esteve, mas hoje é ainda mais evidente. O fator crítico da estratégia de luxo é a criação de desejo. E. desejo é emoção, é experiência, é a memória que se cria, é o sentido de pertença.
O que é o cúmulo do luxo para si?
Uma vida com sentido.
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