Conversas

Filipe Caldas Vasconcelos: “A terra deu-me raízes, o mundo deu-me horizontes”

Era quase inevitável que Filipe Caldas Vasconcelos dedicasse tempo da sua vida ao Morgado do Quintão no Algarve. A propriedade manteve a história agrícola e cultural e uma ascendência familiar que vai até ao primeiro dono, o 1.º conde de Silves no século XIX. A inevitabilidade tem a ver com o produtor que se tornou o guardião de um património que hoje cruza vinho, arte e enoturismo.

Filipe Caldas Vasconcelos é o guardião do Morgado do Quintão, no Algarve Foto: DR
24 de outubro de 2025 | Augusto Freitas de Sousa
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O Filipe Vasconcelos é o próprio “morgado” do Quintão?

O Morgado do Quintão foi adquirido pelo meu quarto-avô, Salvador Gomes Vilarinho. O seu genro, Francisco Manuel Pereira Caldas, o 1.º conde de Silves, desenvolveu-o no século XIX. Quando assumi a responsabilidade da propriedade, em 2016, não foi para representar uma linhagem familiar, mas sim para dar continuidade e futuro a um património que considero vivo e relevante. Prefiro ver-me como guardião de um lugar que tem uma história agrícola e cultural, e que hoje precisa de ser reinterpretada para o nosso tempo, missão essa que partilho aliás com a minha irmã Teresa, grande companheira nesta aventura.

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Pode explicar a relação da sua família com a quinta?

O lado da minha família relacionado ao Morgado do Quintão tem uma longa ligação ao Algarve, apesar de ser originalmente do Minho. Uma linha veio para o Algarve com enorme espírito empreendedor, incluindo o meu trisavô, o 1.º conde de Silves, Francisco Manuel Pereira Caldas, que foi uma figura de grande peso político e económico no século XIX. Foi ele quem fundou o Morgado do Quintão como uma casa agrícola modelar, com vinhas, olivais e figueiras. Ao longo das gerações, a propriedade foi passando de pais para filhos, sempre mantendo esse espírito agrícola. Os meus bisavós, apesar de viverem na Avenida da Liberdade em Lisboa, foram decisivos ao preservar esse legado, e depois as minhas tias-avós quando o Algarve se transformava rapidamente com o turismo de massas.

Oliveira centenária, Morgado do Quintão no Algarve Foto: DR

Como lida com esse legado monárquico e como se sente nesse papel?

Não me interessa muito a nostalgia dos brasões, mas sim a responsabilidade de fazer algo com sentido neste tempo. O verdadeiro legado passa por continuar a cuidar da terra, da cultura e das pessoas. Espero honrar o significado deste lugar com ação concreta, transformando o Morgado do Quintão num projeto cultural, agrícola e enoturístico vivo e vibrante, enquanto encontrar sentido nessa missão, sem nunca sentir que é uma obrigação.

De que forma esse passado contribuiu para o que é hoje o Filipe?

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Contribuiu de duas formas: deu-me raízes e deu-me perguntas. As raízes são a ligação à terra, ao Algarve, à agricultura, ao sentido de continuidade. As perguntas são sobre o que fazer com esse legado: como o reinventar, como dar-lhe significado hoje, como transformá-lo num projeto que seja ao mesmo tempo economicamente viável, culturalmente relevante e humano. Esse equilíbrio entre tradição e reinvenção moldou toda a minha forma de estar.

Morgado do Quintão, Algarve. Foto: DR

Como foram os seus primeiros anos?

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De um lado, a vida lisboeta: uma família unida, a escola, a disciplina, e um ambiente culturalmente intenso. A minha mãe, artista plástica, ensinou-me desde cedo a observar o mundo com curiosidade e a encontrar beleza no detalhe e harmonia no acaso. Esse lado urbano deu-me o gosto pela cidade, pela “movida”, pela atualidade. Mas havia também o outro lado: os longos verões no Algarve. A casa dos meus bisavós, um chalé à beira-mar com escadas que desciam para a praia, foi o grande palco das minhas memórias de infância. Era uma vida simples e alegre – dias de mar e de sal, passeios, refeições com frutas e legumes vindos do Morgado do Quintão, conversas com primos e amigos ao cair da tarde. Foi ali que nasceu a minha ligação à terra, à natureza e ao ritmo da vida fora da cidade. A minha família mudou-se para os Estados Unidos, quando a minha mãe foi fazer um mestrado em Arte em Boston. Eu tinha apenas 16 anos, e essa experiência precoce fora de Portugal foi importante para mim e, desde então, nunca mais me senti apenas de um lugar ou de uma cultura. No fundo, a minha infância foi um diálogo entre raízes e horizontes – entre tradição e descoberta, pertença e liberdade. E é dessa fusão que vem tudo o que faço hoje: a forma como trabalho a terra, como penso o vinho e como me relaciono com o futuro.

O que faziam os seus pais?

A minha mãe, Teresa, era artista – escultora, formada na ESBAL, em Lisboa, e depois em Boston, professora universitária e estudiosa. Tinha um olhar curioso, culto, exigente. Ensinou-me a ver. Artista plástica, vivia entre a criação, o estudo e o ensino, e transmitiu-nos uma enorme curiosidade pelo mundo e pela cultura. Não sei se herdei dela um olhar artístico, mas herdei certamente a capacidade de apreciar o belo e de reconhecer a importância da beleza na vida. O meu pai, engenheiro civil, hoje com 92 anos, sempre foi mais discreto, mas tinha uma enorme capacidade de garantir que tudo funcionava. Era prático, organizado, estruturador, e ao mesmo tempo muito amigo dos filhos. Ambos foram opostos e complementares: ela, o impulso criativo, ele, o alicerce fundamental.

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Que mudanças mais significativas ocorreram na propriedade?

Houve várias mudanças. O Algarve transformou-se radicalmente com o turismo, e muitas quintas foram vendidas ou convertidas em resorts. O Morgado do Quintão resistiu, mas passou por períodos de letargia. A grande transformação chegou em 2016, quando decidimos investir seriamente na propriedade. Apostámos na viticultura biológica, na recuperação de vinhas velhas de castas autóctones como a Negra Mole e o Crato Branco. Lançámos vinhos que ganharam reconhecimento internacional – como o Palhete, destacado no New York Times e na Decanter. Trouxemos a enóloga Joana Maçanita, que ajudou a consolidar o estilo dos vinhos. Abrimos as portas ao enoturismo, recebendo hoje mais de 10.000 visitantes por ano. E transformámos o lugar num espaço cultural, com concertos, residências artísticas e jantares vínicos. Hoje o Morgado do Quintão é mais do que uma quinta: é um lugar vivo, onde se cruzam a agricultura regenerativa, o vinho, a arte e o enoturismo. De um lugar produtivo, tornou-se também um lugar criativo, de encontros e, de uma certa forma, de regeneração.

Parte da propriedade Morgado do Quintão, Algarve Foto: Drone Gatekeepers

Qual foi a sua formação académica e profissional?

Fiz gestão com formações complementares em marketing e estratégia. Sempre me interessou a ideia de criar valor através das ideias, e isso marcou o meu percurso. Trabalhei fundamentalmente em grandes agências de publicidade internacionais, em Lisboa, Paris e Nova Iorque. Mais tarde, enveredei pela consultoria e pelo empreendedorismo, procurando unir criatividade e visão de negócio. Para além de gerir o Morgado do Quintão, faço a gestão de algumas empresas nas quais sou investidor e do património da família, e lancei recentemente um fundo de investimento com foco em escalar empresas portuguesas nos Estados Unidos, um mercado que conheço bem por ter lá vivido, estudado e trabalhado.

Qual foi o país onde mais gostou de trabalhar?

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Os Estados Unidos marcaram-me profundamente, pela capacidade de sonhar grande, pela coragem de arriscar e pelo pragmatismo. Mas o Japão, onde passei uns tempos enquanto adolescente, ensinou-me talvez o oposto: o silêncio, o detalhe, o respeito pelo tempo.

De que forma essas estadias fora marcaram a sua vida?

Deram-me amplitude de visão. Percebi que não há uma única forma de viver ou de fazer as coisas. Aprendi a respeitar culturas muito diferentes e a valorizar a autenticidade. No fundo, o que trouxe dessas experiências foi a convicção de que só projetos verdadeiros, enraizados numa identidade, conseguem ter impacto global. Essa é a essência do Morgado do Quintão: um projeto profundamente algarvio, mas com vocação e ambição global e que não se fica por aqui, que quer sempre ir mais longe e foge da banalidade.

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Houve alguma figura que marcou decisivamente a sua forma de ver o mundo?

Não houve uma única figura, mas sim várias influências ao longo do tempo: professores, colegas, artistas, amigos. Todos me ensinaram. Mas talvez a maior influência tenha sido o contacto direto com culturas diferentes. Mais do que uma pessoa, foram encontros com realidades que me ensinaram a olhar o mundo com curiosidade e sem medo.

O que moldou a sua visão do mundo?

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A combinação entre a tradição familiar e as experiências internacionais. A terra deu-me raízes, o mundo deu-me horizontes. Moldou-me a consciência de que é possível ser profundamente local e, ao mesmo tempo, viver inserido num mundo enorme. Essa é a filosofia do Morgado: um lugar profundamente algarvio, mas que pode ter razão de ser para quem vive em Nova Iorque, Londres ou Tóquio.

Filipe Vasconcelos Foto: DR

Como nasceu o seu interesse pelo vinho?

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Sempre esteve presente, em pano de fundo, por causa da família e das vindimas. Quando era pequeno via as garrafas antigas arrumadas no lagar e ouvia histórias de vindima. Mais tarde, percebi que o vinho era uma forma de dar voz à paisagem. Comecei a provar desde cedo e, mais tarde, a visitar produtores, a estudar e entendi que o vinho é uma linguagem: uma forma líquida de contar histórias e de nos aproximar dos outros.

Quais foram os maiores riscos quando assumiu a propriedade?

A ideia de agarrar num espaço carregado de memórias e transformá-lo sem o desvirtuar, não foi evidente ao início. E outros ainda: como apostar numa região com pouca notoriedade vinícola, recuperar castas esquecidas, trabalhar de forma regenerativa quando quase ninguém falava nisso e fazê-lo com imensas limitações a vários níveis. Mas o maior risco que corremos foi acreditar que o público estava pronto para vinhos algarvios mais emotivos, feitos destas castas esquecidas e estar disponíveis para pagar por isso – e felizmente, estava.

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Quem compõe a equipa do Morgado do Quintão?

A enóloga é a Joana Maçanita, uma das referências da nova geração de enólogos em Portugal. No campo, temos uma equipa focada na viticultura regenerativa liderada pelo professor Amândio Cruz. No enoturismo e hospitalidade, recebemos hoje mais de 10.000 visitantes por ano, com provas, almoços e estadias nas casas da quinta. Empregamos pessoas da região e colaboramos com chefs, artistas e músicos. O Morgado do Quintão é um projeto coletivo feito a muitas mãos.

Que vinhos produz e qual destacaria?

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Temos um Branco de Vinhas Velhas de Crato Branco que ganhou o prémio de um dos 30 melhores vinhos de Portugal da Revista de Vinho, um Palhete feito com as duas castas mais emblemáticas da região e um Clarete feito somente de Negra Mole, o mais simbólico de todos, entre já quase dez vinhos que fazemos por ano. Esse vinho é leve, luminoso, com alma algarvia. É o vinho com que mais me identifico e que mais identifica a casa: um vinho de hoje, mas inspirado no passado, sofisticado, mas sem ser pretensioso.

O vinho ensinou-lhe alguma lição importante?

Ensinou-me paciência, humildade e resiliência. Paciência porque o vinho obriga a esperar. Humildade porque nunca controlamos tudo, como é o caso do clima, o solo, a natureza. Resiliência porque todos os anos é preciso recomeçar.

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O que distingue o terroir do Algarve?

A luz. A proximidade do mar. As amplitudes térmicas inesperadas, os solos de areia e a casta Negra Mole – delicada, luminosa, quase uma metáfora da região. É um terroir que fala baixo, mas com verdade.

Vinhos Morgado do Quintão Foto: DR

Como é o seu envolvimento no processo?

Total. Estou presente em tudo o que considero essencial – da filosofia de produção ao design dos rótulos, da escolha dos lotes ao modo como recebemos quem nos visita até à escolha musical da nossa festa de fim de vindimas, a OpenHouse. Gosto de estar entre as vinhas e a mesa, entre o vinho e a conversa. O projeto tem a minha cara porque tem o meu tempo. E as minhas dúvidas também.

Como descreveria a alma dos seus vinhos?

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Autêntica, luminosa, elegante. São vinhos que não gritam, mas ficam. Que têm algo de ancestral e algo de moderno. São conversas lentas, entusiasmantes e cheias de verdade.

Como vê o mercado vinícola português nos próximos anos?

Com potencial imenso. O futuro está na diferenciação: nas castas autóctones, na sustentabilidade e nas histórias verdadeiras. O Algarve pode ter um papel único, se continuar a caminhar com coragem e identidade. Mas vai ser preciso criar novas maneiras de estar no negócio e lutar para manter a relevância cultural do vinho.

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Este projeto transformou-o enquanto pessoa?

Completamente. O ritmo da terra ensinou-me a estar mais atento aos outros, aos ciclos, a mim próprio. Aprendi a aceitar melhor o imprevisto, a valorizar o tempo, a falhar com um pouco mais de dignidade e menor preocupação. A cada vindima torno-me mais atento, mais enraizado, mas ao mesmo tempo mais livre.

O que gostaria que dissessem de si um dia, num brinde com o seu vinho?

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Que tive a coragem de fazer diferente, de desafiar o previsível. E que, no fim, deixei mais vida – humana e natural – do que aquela que encontrei.

Se tivesse de brindar hoje com um dos seus vinhos, a quem ou ao quê brindaria?

À terra e à equipa. À terra, a tudo o que nela cresce, vive e nos devolve sentido porque sem a terra nada seria possível e à equipa que tem vindo a ajudar a fazer crescer este projeto por sem a equipa nada se teria realizado.

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Filipe Vasconcelos Foto: Bebes.Comes

Como vê o mundo atual – guerras, extremismos, incerteza?

Com preocupação, mas com esperança. Vivemos tempos turbulentos, mas acredito no poder das pequenas comunidades, no exemplo que podemos ser e dar nos nossos círculos, na educação emocional e na cultura como antídoto. O vinho, a arte, a terra são formas de resistência.

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Se pudesse, teria propostas para a resolução dos problemas mundiais?

Eu acredito no poder do local – na regeneração dos lugares, das comunidades e da cultura que nos define. Porque é aí, no que está mais próximo, que começa a verdadeira mudança. Quando cuidamos da nossa terra, fortalecemos quem somos. E quando cada comunidade floresce, o mundo inteiro avança.

Está atento à atualidade em Portugal?

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Sim. Portugal tem talento e energia, mas tropeça ainda em velhos vícios: burocracia, medo, falta de ambição. Precisamos de visão e confiança. Há um país novo a querer nascer, falta-lhe acreditar em si.

Como é o seu dia-a-dia?

É feito de contrastes. Um pé na terra, outro na cidade. De manhã posso estar no Morgado do Quintão a falar com equipa sobre a poda; à tarde em Lisboa a preparar o lançamento de um vinho ou pensar em como devemos investir para continuarmos a crescer. Tento equilibrar ação e reflexão, e guardar tempo para o que é essencial: a família, os amigos, a escuta. Divido o tempo entre Lisboa e o Morgado do Quintão. Lisboa dá-me rede, energia, estímulo; o Algarve dá-me chão e espaço de criação.

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Qual é o seu maior sonho para o Morgado do Quintão?

Temos uma visão muito clara – e ousada: que o Morgado do Quintão se torne um case study de regeneração do sul de Portugal e uma referência internacional na nova geração de vinhos premium, reconhecido pela autenticidade, pela elegância e pela alma que colocamos em tudo o que fazemos. Queremos que a propriedade seja um ecossistema vivo onde se cruzam cultura, agricultura e hospitalidade. O futuro passa por expandir a nossa presença nos vinhos, elevar a oferta hoteleira e criar experiências de rara autenticidade – momentos que toquem verdadeiramente as pessoas, que as liguem à paisagem, ao silêncio e à beleza deste lugar. Queremos fazê-lo com design excecional, com arquitetura que dialogue com a história e com práticas agrícolas regenerativas que devolvam à terra o que ela nos dá. Sem esquecer um programa cultural ambicioso, que transforme o Morgado do Quintão num polo de criação, pensamento e encontro – um lugar onde o sul de Portugal se possa reinventar, com dignidade e visão. Queremos regenerar o lugar – e, através dele, regenera e inspirar também as pessoas que com ele se cruzam.

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