Viver

Isto Lembra-me Uma História: Descansa em paz, Steve Albini

O mítico músico, engenheiro de som e produtor, que gravou bandas como os Nirvana e os Pixies, entre muitos outros, morreu recentemente. No currículo, deixa trabalhos que marcaram gerações. E uma carta muito especial.

Foto: Getty Images
12 de maio de 2024 | Diogo Xavier

Steve Albini morreu no dia 7 de maio, aos 62 anos. Foi vítima de um ataque cardíaco, dizem na imprensa. O seu nome não será conhecido entre o público genérico, em princípio apenas um nicho dedicado ao rock indie e alternativo, e em especial ao rock alternativo dos anos 90, saberá de quem se trata. E esse é um dos grandes elogios que se pode fazer ao músico, produtor e engenheiro de som que foi Steve Albini, cujo posicionamento em relação à indústria musical americana e ao chamado mainstrem sempre se orientou por princípios éticos rigorosos na preservação do som puro, preferindo o analógico ao digital e dispensando os efeitos e adereços que não fossem necessários às músicas que gravava.

Das bandas que liderou e com quem tocou, os Shellac serão certamente os mais conhecidos do público português, para quem atuaram diversas vezes, quase sempre - mas não só - integrando o cartaz do Primavera Sound, no Porto. Em universos paralelos, os Shellac estavam para o Primavera Sound como Ivete Sangalo está para o Rock in Rio. Antes dos Shellac, fundados em 1992, no pico de forma e de popularidade de Steve Albini entre o circuito alternativo, o músico liderou os Big Black e os Rapeman durante a década de 1980. Todas estas bandas, cada uma à sua maneira, foram influentes em registos tão distantes do ouvido comum como o do post-hardcore ou o do noise rock.

O facto de não tocar para as massas, de não produzir discos milionários com pretensões a atingir o top de vendas e de nunca o ter feito por uma questão de princípio - há uma conversa com Anthony Bourdain em que o chef-escritor lhe pergunta "tu és, de alguma forma, socialista?", ao que Albini responde com uma explicação um bocadinho mais complexa da sua maneira de estar, em vez de se deixar ficar debaixo de uma etiqueta simplista - não diminuem nem nunca diminuíram o trabalho e o mérito do engenheiro e produtor. A indústria musical, mais mainstrem ou mais alternativa, sabem perfeitamente que Albini era um mestre da sua arte, um homem raro. Além disso, tem um palmarés que fala por si, mesmo que nos concentremos apenas no que fez na primeira metade dos anos 90: Pixies, The Breeders, Nirvana, PJ Harvey, Jimmy Page e Robert Plant (pós-Led Zeppelin) ou The Jesus Lizard são alguns dos artistas que passaram pelas mãos, pelo estúdio e pela mesa de mistura de Steve Albini, na Electrical Audio, em Chicago.

E isto lembra-me a história da célebre carta que Steve Albini enviou aos Nirvana, quando a banda de Seattle decidiu que In Utero, o seu último álbum de originais, teria de ser gravado e produzido por alguém que respeitasse o som genuíno e o despisse de adornos. Kurt Cobain confessara na antecâmara das gravações que achava o espectro sonoro de Nevermind (1991), o álbum predecessor, demasiado unidimensional, e que procurava, no novo registo, um padrão mais extremado, com as canções mais ruidosas e duras a revelarem a sua essência até ao máximo possível, enquanto as canções mais doces e suaves fossem, por seu lado, levadas aos ombros dos seus contornos mais delicados, intimistas e frágeis. Na altura, Butch Vig, que produzira Nervemind, respondeu que, assim sendo, teriam de procurar outra pessoa. E os Nirvana assim fizeram.

Quando nos bastidores da indústria começou a circular o nome de Steve Albini associado ao novo disco dos Nirvana, o produtor e engenheiro fez questão de desmentir tudo. Os rumores tinham fundamento. Kurt Cobain já havia afirmado publicamente que tinha como referências o som de dois dos seus álbuns favoritos, Surfer Rosa (1988), dos Pixies, e Pod (1990), dos Breeders, ambos gravados e produzidos por Albini. Só que não havia contactos oficiais. Além disso, o produtor não era o maior adepto do som dos Nirvana, que chegou a descrever com algum menosprezo como sendo "os R.E.M. com fuzz" e "uma versão irrelevante do som de Seattle". Num intervalo de poucas semanas, o management dos Nirvana contactou Steve Albini e tornou a pretensão oficial. Depois, o próprio Cobai telefonou-lhe e explicou o que queria. E Albini, embora relutante - lembremo-nos que repudiava o mainstream e que o álbum anterior da banda de Seattle, Nevermind, vendera mais de 10 milhões de cópias -, aceitou o desafio por considerar que, na essência, o trio liderado por Cobain era em tudo semelhante às bandas de garagem que lhe apareciam no estúdio, com muito espírito e uma grande honestidade musical.

Albini aceitou o desafio, mas nos seus próprios termos. E para deixar claro o que esperava e o que pretendia, enviou aos Nirvana ("Kurt, Dave and Chris", assim começa) uma carta de quatro páginas. E essas são quatro páginas preciosas da história da música dos anos 90. Quando a notícia da morte de Steve Albini começou a ser veiculada por publicações como a Pitchfork ou a Rolling Stone, os representantes dos Nirvana decidiram homenagear o produtor e engenheiro de som de In Utero recordando a inspirada missiva.

Albini começa a carta desculpando-se pela demora a responder, "levei um par de dias para alinhar ideias e palavras", escreve, justificando que "quando o Kurt [Cobain] me telefonou, estava a meio das gravações de um álbum de Fugazi" - seria o disco In on the Kill Taker, de 1993. E depois prossegue, indo direto ao assunto logo no segundo parágrafo: "Acho que o melhor que vocês têm a fazer é exatamente aquilo que me estão a dizer, mandar cá para fora um disco gravado num par de dias, com alta qualidade mas mínima produção e sem interferências nem ordens lá dos escritórios." "Se é isso mesmo que pretendem fazer, adorava fazer parte do processo." Albini percebia que os Nirvana não eram a típica banda best seller, não eram iguais aos cromos do costume da indústria, cheios de maneirismos e brilhantes, de manias e de truques. Aqueles rapazes, que vendiam discos aos milhões, eram tão punks quanto as bandas de liceu.

No parágrafo seguinte, Albini advertia para a possibilidade de estarem a ter apenas uma espécie de tempo de recreio concedido pela editora, a Geffen Records, para fazerem o que lhes apetecesse. Mais tarde, alerta Albini, eles podem começar a pedir correções, alterações, o adocicar de canções, a regravação, a mudança de abordagem, podem até mesmo chamar uma estrela da produção para refazer o que já foi feito. "Se for esse o caso, não quero ter nada a ver com isso." "Só me interessa trabalhar em álbuns que reflitam verdadeiramente a perceção que a banda tem da sua música e da sua própria existência. Se vocês se comprometerem", escreve, "vou dar tudo por vocês".

Antes de explicar a sua metodologia, o produtor aproveita para falar da sua já na altura (tinha então 30 anos) longa experiência. "Trabalhei em centenas de discos (uns excelentes, outros bons, outros horríveis, muitos completamente falhados) e observei a correlação direta entre o resultado final e a disposição da banda ao longo do processo." Depois explica que "mais tempo em estúdio" e "mais trabalho" não significa um melhor resultado. "Não se deve escrutinar cada passo", defende. "Claramente, vocês já perceberam isso e apreciam a lógica", remata, a propósito do que Cobain defendia: a necessidade de ter um disco mais puro e menos arredondado do que o Nevermind.

O texto de Steve Albini, assombrosamente honesto e despojado, continua, com o produtor a explicar o método em cinco pontos. No primeiro de todos, explica que, ao contrário do que se usa (usava na época, talvez se mantenha até hoje), um disco não é "um projeto do qual a banda é uma parte igual às outras". O artista é o centro, o princípio e o fim de tudo; o disco é o resultado final do que a banda produz. "Gosto de deixar espaço para acidentes e caos", afirma a determinada altura, o que diz muito sobre a sua filosofia de trabalho. No segundo ponto, mais técnico, junta a gravação e a mistura, afirmando que as remisturas nunca resolveram problemas que existissem à partida. Acrescenta ainda "não remisturo faixas de outros produtores e também não gosto que andem a remisturar as minhas". Assertivo.

No terceiro ponto, as sugestões técnicas continuam, mas é a maneira como Albini expõe os seus argumentos que encanta - e é muito difícil ser-lhe fiel traduzindo. Mas a ideia é basicamente esta: o produtor tem a sua panóplia de gostos, mas para ele não faz sentido impor o seu estilo às músicas dos outros. A banda é que decide que tipo de hardware pretende para obter o som de que gosta. E depois logo se articulam. Nesta passagem, fica muito claro que Albini se punha ao serviço das bandas como um assistente, como uma ferramenta, como um técnico especializado em auxiliar, facilitar e concretizar os desejos dos artistas. O oposto do perfil dos produtores de então, portanto. O último ponto técnico da carta diz respeito ao sítio onde se grava: "Não tem importância", diz Albini. "É muito mais importante como se grava do que onde se grava." Pode ser num estúdio sugerido pelos Nirvana, ou pode ser noutro qualquer. Pouco importa.

E depois chegamos ao fim, com uma declaração que é, por si, elucidativa: "Eu já tinha dito isto ao Kurt, mas é importante reiterar. Eu não quero e não vou aceitar royalties por qualquer disco que eu grave. Não há cá pontos percentuais. Ponto final. Acredito que pagar royalties a um produtor ou engenheiro é moralmente indefensável." Acrescenta ainda que "é a banda a responsável por que o disco seja excelente ou horrível". "Os dividendos pertencem à banda. Gostava de ser pago como um canalizador: eu faço o meu trabalho e vocês pagam-me o valor desse trabalho." Depois, explica: se ficar com 1 ou 1,5% das vendas, tal como se usava na época, e se um álbum vender 3 milhões de cópias, o que seria expectável no caso dos Nirvana - nota: o disco acabaria por vender mais de 4 milhões e 250 mil cópias -, Albini ganharia, aos preços de 1993, 400 mil dólares. "Nunca na vida eu aceitaria tanto dinheiro. Não seria capaz de dormir."

Antes de terminar, Steve Albini escreve ainda que acredita que os Nirvana serão justos a estabelecer o valor a pagar e demove-os de contrapartidas que ainda estão em voga, tais como o prestígio. "Acredito que haja muita gente que, ao ver-me associado à vossa banda, queira trabalhar comigo", afirma. Mas isso não lhe interessa. Por um lado, porque já tem trabalho de sobra. Por outro, porque não pretende trabalhar com esse tipo de artistas.

Depois de terminada a carta, Albini deixa um post scriptum que deve servir de guia para as gerações vindouras: "Se um disco demora mais de uma semana a fazer, é porque alguém está a fazer merda. Oi!" Descansa em paz, grande Albini.

Saiba mais Viver, Isto Lembra-me Uma História, Steve Albini, Músico, Nirvana
Relacionadas

Isto Lembra-me Uma História: Um Papa como uma estrela pop

Esta história é diferente das histórias dos antecessores de Francisco. Muito mais do que lembrar as histórias desses, a deste Papa lembra muito mais a de uma lenda do rock, por exemplo. Francisco é o grande ídolo das multidões.

Mais Lidas
Viver E se Lisboa fosse uma cadeira?

O designer japonês Keiji Takeuchi criou uma cadeira reclinada, pensada para aproveitar o verão da melhor forma, e decidiu chamar-lhe Lisboa. E embora o sossego, por estes lados, não seja muito, varandas soalheiras, mesmo a pedir uma "lounge chair", é o que não falta.