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Isto Lembra-me Uma História: De Joaquim Agostinho a Peter Thiel, as olimpíadas em esteróides

Onde antes existia uma proibição, uma barreira, uma vedação que impedia atletas vencedores de serem coroados, vai passar a existir, em 2025, uma vedação, uma barreira, uma espécie de reserva natural. Para atletas dopados, sim, mas legitimamente.

Joaquim Agostinho na Volta a França, 1969
Joaquim Agostinho na Volta a França, 1969 Foto: Getty Images
04 de fevereiro de 2024 | Diogo Xavier

Tanto quanto posso afirmar, era mesmo eu o único puto de toda a escola a gostar do Ben Johnson. Estamos a falar das Olimpíadas de Seul, em 1988. A maior parte dos leitores não está familiarizado com esse tempo longínquo. Os que estão, andam neste momento à procura dos óculos, às apalpadelas com as mãos pela mesa de leitura e a dizer, "espera aí, espera aí, eu conheço este nome".

 O Ben Johnson era um tipo canadiano, negro, muito escuro, robusto, musculoso e extremamente veloz. Era e é: Ben Johnson ainda está vivo, felizmente. Uma lenda, ainda que viva. Mas refiro-me ao Ben Johnson de há 36 anos e é por isso que me dirijo ao passado, àquele tempo específico: o verão de 1988 – um verão mítico, praticamente épico, preenchido por uns Jogos Olímpicos de onde Portugal trouxe uma medalha de ouro, a segunda da sua história (Rosa Mota, a grande, na Maratona, pois claro), e por um Campeonato da Europa de Futebol que, mesmo disputado sem a presença da seleção nacional, deu ao mundo um dos momentos mais preciosos da história do futebol: o golo de Marco Van Basten, pela Holanda (à época, dizia-se "Holanda", Países Baixos era uma coisa muito francófona de se dizer), contra a União Soviética, na final, no incrível Estádio Olímpico de Munique (tudo olímpico: o verão, o estádio, o golo de Van Basten).

Voltando a Ben Johnson. O extraordinário atleta canadiano, que ao longo dos 10 ou 12 meses anteriores à grande competição tinha lidado com lesões musculares, chegou a Seul num surpreendente pico de forma. Johnson seria um dos grandes contendores pelas medalhas na prova de 100 metros – velocidade, em pista: músculo, destreza, genica e estratégia em cerca de 10 segundos. Mas Ben Johnson era um underdog, ninguém esperava dele que ganhasse o ouro olímpico. A seu lado, na pista, havia um americano que anos mais tarde havia de ser considerado o "atleta perfeito": Carl Lewis, também ele afrodescendente (como grande parte dos atletas de topo no atletismo de velocidade, de resto), era capaz de roçar a marca dos 10 segundos, que, na altura – uma altura muito anterior ao surgimento de Usain Bolt, esse monstro inacreditavelmente veloz que destruiu toda a esperança de todos os velocistas para os próximo, digamos, 400 anos –, eram A Marca: psicologicamente, a fasquia dos 10 segundos parecia praticamente insuperável.

Portanto, foi neste contexto que o baixote Ben Johnson (1 metro e 77, 75 quilos) pulverizou tudo o que havia em seu redor: concorrência, juízes, público, Carl Lewis, regras, limitações, tudo foi pelos ares quando a bala canadiana ultrapassou a marca da meta somente 9,79 segundos depois de ter disparado da linha de partida. Recorde olímpico, recorde mundial, recorde do universo! Isto não era, não podia ser, um feito humano. Tinha de ser sobre-humano. Foi-se ver, era mesmo: Johnson estava dopado. Estanozolol, diziam as análises. Um esteróide que o Comité Olímpico Internacional tinha banido, surgia com generosa presença nas análises à urina de Ben Johnson. Foi desclassificado, perdeu a medalha de ouro ali mesmo, ainda a Seul, não muito depois da cerimónia do pódio. O título olímpico passou então para aquele que foi vice-campeão no mesmo Tartan. Carl Lewis, o americano voador (também foi campeão de salto em comprimento e de triplo salto), ficava então com a medalha de ouro e os recordes, olímpico e mundial. Anos mais tarde, o próprio Carl Lewis seria denunciado pelo uso de estimulantes (acusou positivo três vezes nos testes preliminares ao longo das olimpíadas de Seul).

A corrida ficaria para história como "a mais suja de todos os tempos": seis dos oito finalistas da prova tiveram problemas com doping.  Os Jogos Olímpicos de Seul, em 1988, são mesmo um dos expoentes máximos dos vencedores-com-aditivo (e ficamos a pensar na quantidade de histórias que, à época, não eram desvendadas) em grandes competições mundiais. Florence Griffith Joyner, mais conhecida como "Flo-Jo", também deixou a marca nos recordes olímpico e mundial depois das suas prestações nas provas dos 100 e 200 metros em pista. Depois de muita especulação em torno do uso – ou mão – de estimulantes musculares para melhorar substancialmente as suas prestações, Florence ganhou tudo o que havia para ganhar. Morreu aos 38 anos "durante o sono", segundo os pareceres médicos. Na época, foram vários os atletas seus contemporâneos a testemunhar que a tinha visto dopar-se – à antiga: injetando-se com substâncias como testosterona, por exemplo. Podia ser cómico se não fosse tão trágico.

Mas falar de dopagem nem devia ser permitido ou legítimo sem se ir buscar o nome daquele que é o epítome do uso de maneiras alternativas de fazer com que o corpo funcione muito melhor do que funcionaria naturalmente. Sim, ele mesmo: Lance Armstrong. O ciclista, o heptacampeão do Tour de France, o maior de todos os tempos.

Antes de avançarmos, façamos um interlúdio: Joaquim Agostinho (1943-1984), grande campeão português de ciclismo, vencedor de várias etapas da Volta a França e de três Voltas a Portugal em Bicicleta, também teve os seus affairs com a "amarelinha" – "o meu doping não é a amarelinha, é a minha loirinha", diria o ciclista saloio, de Torres Vedras, aludindo à sua musa inspiradora, Ana Maria, a conterrânea com quem viria a casar. Porém, as alegações não foram só fogo de vista. Agostinho perderia mesmo na secretária duas das cinco voltas que ganhara na estrada. Em ambos os casos, por suspeitas do uso de doping.

Voltando a Armstrong, e tendo em mente que o ciclismo é provavelmente a modalidade mais devastada pelo uso continuado, comprovado e desmascarado de aditivos: o ciclista americano, cuja história inicialmente comoveu e inspirou o mundo (vencedor de uma luta contra o cancro do testículo, foi casado com a estrela pop-country Sheryl Crow e ganhou tudo o que havia para ganhar depois dos tratamentos), viria a ser despojado de todos os seus títulos conquistados após 1998, quando a UCI – União Ciclista Internacional determinou que tudo o que havia ganhado antes tinha sido com batota. O próprio acabou por admiti-lo, há documentários, séries, reportagens, enfim, todo o tipo de material que um cidadão americano pode rentabilizar quando a sua vida se torna o centro de um escândalo e, perante a iminência do desemprego, as pessoas decidem "olha, porque não?".

Nada disto seria assunto, a não ser que andássemos para aqui a esvaziar baús de memórias em busca de histórias antigas. Sucede que é mais ou menos isso que fazemos, e esta semana saiu a notícia que garante haver um milionário disposto a financiar uma competição olímpica "intensificada" – o termo, no original, é enhanced, que pode ser traduzido de vários formas, como "reforçado", mas vamos preferir o "intensificado", porque é disso que se trata, afinal, e não desfazendo do reforço inerente a essa intensificação.

Sim, estamos a falar de doping. Peter Thiel, empresário e empreendedor americano (um dos fundadores da PayPal, por exemplo), especialista em investimentos de risco, chegou-se à frente e, não só identificou o elefante na sala, como ainda o adotou como animal doméstico. "Ai, há doping nos bastidores? Ok, então e se fizéssemos umas olimpíadas que aceitassem o uso de substâncias?" E foi deste pressuposto que Thiel partiu para desenhar uma prova que, se tudo correr bem – e há de correr, uma vez que até pode socorrer-se de substâncias extraordinárias –, há de fazer a estreia mundial em 2025.

Olympics on Steroids, é esse o nome do evento. Sem pudores, sem hipocrisias, sem batotas. Um jogo abertamente sujo para que a sujidade não se acumule nos cantos nem fique debaixo dos tapetes. À vista de todos, os atletas podem "intensificar-se" com recurso a substância estimulantes, dopantes, o que quiserem chamar-lhes, para garantirem o aumento do seu desempenho. Quem está à espera de ver atletas super-dopados, com olhos esbugalhados e vermelhos, veias salientes e convulsões, no entanto, é melhor baixar as expectativas. Não sendo impossível que tudo isso aconteça, haverá, no entanto, equipas médicas para aferir da viabilidade física de determinadas "intensificações". Drogados, sim, mas com juízo. A passagem do tempo é, de facto, muito injusta. Para todos, até para os mais rápidos, como Carl Lewis, Flo-Jo, Ben Johnson ou Lance Armstrong. Fica a lição: nesta vida, o que mais importa não é ser o mais rápido, é estar no sítio certo à hora perfeita.

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