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Isto Lembra-me Uma História: As famílias e as Bíblias nas mãos de políticos

Tem dado que falar o lançamento de um certo livro que visa, entre outras coisas, determinar o lugar da mulher na sociedade e na família. E um antigo primeiro-ministro associou-se à promoção desse livro, o que aumentou a visibilidade e o mediatismo do lançamento. E também na América há uma bizarra relação entre um político e um livro.

Foto: Getty Images
13 de abril de 2024 | Diogo Xavier
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Tem sido notícia, com muito mais intensidade e frequência do que o português médio gostaria e estaria disposto a conceder, que um grupo de pessoas velhinhas, constituído maioritariamente por senhores de idade, mas também adornado com a quota mínima de senhoras idosas - "é para elas não reclamarem", diria, aposto, Paulo Otero aos seus colegas de projeto escolar, perdão, de movimento -, se juntou para escrever um livro. Identidade e Família, eis o título da obra

Depois de uma vista de olhos ligeira, feita à base de leituras breves de capítulos aleatórios, e ainda daquela espécie de manifesto impresso na contracapa, é possível tirar algumas ilações acerca da publicação. A primeira de todas é "talvez chamar livro ao objeto seja exagero". Não querendo ser condescendente, esta reunião de textos, que pretende ser, penso eu, uma antologia didática acerca da instituição familiar, assinada por pessoas pias e bondosas e generosas e conservadoras - mas por boas razões: para nos salvar a todos (exceto se o tema for "políticas ambientais", aí não contem com eles, porque aparentemente esta bateria geriátrica de educadores da sociedade ainda não percebeu que o ambiente nos diz respeito a todos, incluindo aos autores e às respetivas e, depreende-se, numerosas descendências) -, tem muito mais em comum com uma coleção de redações do terceiro ano com o título "Eu gosto da família" do que com um livro, propriamente dito, onde se reunem autores que discorrem sociológica, estatística, antropológica, filosófica, sei lá, até politicamente acerca da família e as suas morfologia e metamorfose. Infelizmente, no terceiro ano são poucos os que compreendem os significados destes últimos dois palavrões, pelo que o mais se encontra nestas páginas é, muito sucintamente, réplicas engalanadas do clássico da literatura de escola primária "a família é muito importante, eu gosto muito da família".

Sim, ao longo do livro há quem vá mais longe e pretenda determinar o lugar da mulher na sociedade - em casa, de preferência na cozinha ou a amamentar recém-nascidos (sempre em nome da família, e com grande admiração pela figura feminina, porque as mulheres são seres humanos com características únicas, diferentes e especiais, como a circunstância, por exemplo, de só elas poderem amamentar com os próprios seios - não sei se algum dos autores reunidos nesta edição diz mesmo isto, que infelizmente ainda não tive tempo para ler tudo, mas se não disse podia ter dito - os infantes que a família tem por obrigação moral e ética criar, educar e evitar que passem fome). E há ainda considerações acerca de assuntos delicados, mas a abordagem é invariavelmente rudimentar, de uma perspetiva individual e, por vezes, egoísta - o que não deixa de ser irónico num livro que pretende ser sobre o "nós" acima do "eu". Que "nós" é esse não fica bem claro.

Acredito que estejamos a dar demasiada atenção e importância a um livro que não faz mais do que juntar as visões pessoais e estreitas de um grupo de pessoas privilegiadas, arregimentadas sob o véu do pensamento beato do mais conservador catolicismo. O conservadorismo é de tal ordem que se manifesta até nos mais pequenos e sórdidos detalhes. Por exemplo, fala-se de "a sociedade estar em constante mudança e de os avanços científicos obrigarem a uma constante actualização" em relação à ideia de família, deduz-se, e uma pessoa fica mais descansada. Mas depois lê-se com mais atenção e está escrito "actualização", com o antigo Acordo Ortográfico, que já não está em vigor. Parece de propósito.

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Adiante. Nada contra os conservadores, aproveitando o mood escola primária, "o ar é de todos", como se dizia no meu tempo. Têm todo o direito à opinião e até a reunir várias opiniões coincidentes, se conseguirem encontrar idosos suficientes para justificar o abate de árvores destinadas a produzir um livro. E conseguiram. Fundaram até o Movimento Acção Ética (cujas iniciais formam a bonita palavra MAE, para o caso de o leitor não ter percebido logo) em 2021, mas só agora esse movimento conseguiu o destaque mediático pretendido para se fazer notar numa sociedade que vive "entre a consistência da tradição e as exigências da modernidade", como se lê no subtítulo do livro. O que não faz muito sentido é precisamente esse destaque mediático que o objeto pretensamente bondoso e pedagógico tem tido. Mas existe uma justificação: é que o livro teve direito a ser apresentado por Pedro Passos Coelho, antigo primeiro-ministro de que tantos sentem saudades e cujas aparições públicas recentes têm tido uma aura messiânica. 

Passos Coelho não tem nada a ver com o livro. Corre-se a longa lista de contribuidores de Identidade e Família e não se encontra lá o nome do ex-governante. E, no entanto, aceitou associar-se à promoção desta empreitada. Inicialmente, até podíamos ser levados a pensar que o fez por respeito aos mais velhos. Acontece que isto me lembra uma história. Não é só Pedro Passos Coelho que empresta a imagem a um livro que não escreveu, recebendo em troca, evidentemente, atenção e reverência. Também nos Estados Unidos da América uma figura política - igualmente acompanhada de uma aura messiânica e capaz de fazer suspirar pelo seu regresso o eleitor mais baralhado - fez isso. Sim, é de Donald John Trump que falo, 45.º e provavelmente 47.º Presidente americano.

Pois bem, Donald Trump lançou há pouco tempo a sua própria versão da Bíblia. Não, não censurou nem retirou partes sob pretexto de serem fake news, a obra resistiu inteira. Pelo contrário, Trump decidiu acrescentar-lhe literatura. Nesta versão, adequadamente intitulada Holy Bible - God Bless the USA, estão incluídas uma cópia da Constituição americana, uma cópia da Declaração dos Direitos dos EUA e ainda - last but not least - o refrão de God Bless the USA, de Greenwood Lee, numa reprodução manuscrita. É preciso escutar-se a canção para se perceber a gravidade e a dimensão do devaneio de Donald Trump, mas a verdade é que a versão trumpista da Bíblia é vendida a 60 dólares o exemplar, o que dá pouco mais de 56 euros por livro ao câmbio de hoje. Não é um livro barato, convenhamos. E tem vendido muito bem, ao que parece, não melindrando as sensibilidades cristãs que, pelo que se vê, não encontram mal algum na apropriação descarada que Trump faz do livro sagrado do cristianismo.

Por mais estranheza que cause este tipo de associação entre um político e um livro que não escreveu - e, no caso, a livros religiosos ou com forte presença de ideais cristãos no conteúdo -, começa-se a perceber que uma parte importante da política futura passará por um regresso ao passado, com a Igreja, seja ela qual for, a voltar a ocupar um lugar de destaque no centro do poder decisor. E isso é, decorrido já um quarto do século XXI, ainda mais estranho do que a associação destes dois homens àqueles dois livros.

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