Luís Serrano Mira, da Herdade das Servas, é um dos maiores entusiastas nacionais da reconversão das vinhas. Criou mesmo o Regenerative Wine Fest, como ponto de encontro entre produtores e curiosos. No site do evento, explica que tudo começou com algumas perguntas inquietantes: “Se no tempo dos meus avós se faziam dois ou três tratamentos por ano, por que razão hoje temos de fazer o triplo ou o quadruplo? Se as vinhas resistiam a inúmeras pragas, por que temos agora de aplicar produtos agressivos de forma preventiva? Se antes havia uma riqueza tremenda de fauna e flora nas vinhas, por que razão hoje parecem campos sem cheiro, sem vida e monocromaticamente verdes?” E conclui: “Temos mais ciência, mas gastamos mais dinheiro porque as vinhas se tornaram incapazes de se defender. Isto faz sentido? É racional? É sustentável? Eu acho que não.”
Os princípios da viticultura regenerativa são relativamente simples – ou pelo menos parecem sê-lo quando explicados por Miguel Soares, responsável de viticultura da Quinta da Covela, a primeira do mundo certificada pela Regenerative Viticulture Alliance (RVA): “Um solo saudável e equilibrado dá origem a videiras saudáveis; videiras saudáveis não necessitam de adubações agressivas nem de pesticidas ou herbicidas de síntese e, em consequência, dão frutos sãos e livres de resíduos.”
Convém não confundir com a agricultura biológica: aqui o foco está na regeneração dos solos e ecossistemas, mantendo-os saudáveis, e não apenas em evitar químicos. Tony Smith, inglês radicado há décadas em Portugal e um dos sócios da Covela, explica que a quinta começou com práticas biológicas, mas “a mudança para a viticultura regenerativa era um passo lógico, até porque a agricultura biológica bem feita deve ser regenerativa”.
Muitos dos métodos – cobertos vegetais, integração de animais, uso mínimo do solo – são ancestrais. A diferença está na aplicação moderna e sistematizada, que só ganhou força na última década. A certificação da Covela chegou no ano passado e mesmo a Regenerative Viticulture Foundation, um pouco mais antiga, apenas começou a certificar em 2020. Tudo ainda muito recente, embora o impacto seja já bastante visível na paisagem vinhateira.
O que faz falta é alimentar a malta
Se um viticultor dos anos 1980 ou 1990 fosse hoje teletransportado para uma vinha regenerativa, talvez se horrorizasse. Antes, uma boa vinha estava “limpinha”, sem ervas, “bem penteada”, como se dizia. Hoje, a diversidade vegetal é o novo sinal de saúde. “Essas plantas nutrem as vinhas de forma equilibrada, fortalecendo o seu sistema imunitário natural e reduzindo o uso de químicos”, explica Francisco Pessoa, responsável pela viticultura da Adega Mayor, no Alentejo – o “braço vínico” da Delta.
Desde 2017, a Adega Mayor implementa práticas alinhadas com a viticultura regenerativa (VR): utilização total de cobertos vegetais, substituição de fertilizantes de síntese por bioestimulantes e extratos botânicos, sementeiras específicas e integração de animais durante o repouso vegetativo. “Estas medidas aumentam a retenção de água e o sequestro de carbono nos solos, contribuindo para um sistema agrícola mais resiliente às alterações climáticas”, diz.
Não se trata, contudo, de “deixar andar”, mas de intervir de forma seletiva, promovendo as plantas que previnem pragas e alimentam as vinhas de nutrientes essenciais.
Nem tudo é um mar de verde no terroir
Ainda assim, vários produtores mantêm reservas quanto à aplicação prática de certos princípios, sobretudo em regiões mais secas. É o caso do enólogo Luís Seabra (Seabra Wines, Textura e Quinta do Adorigo): “Um dos princípios da VR defende que não se deve mover o solo, deixando o coberto vegetal. Isso pode funcionar muito bem em zonas húmidas, como o Minho ou a Bairrada, mas não em regiões de stress hídrico como o Douro. Não queremos que o coberto concorra com a videira pela água disponível. A agricultura regenerativa também precisa de estar adaptada ao local.” A mesma preocupação é partilhada por Márcio Nóbrega, responsável de viticultura da Kopke, que promove coberto vegetal em todas as vinhas do Douro, mas que no verão “arranca ou elimina as plantas ainda verdes, porque estão a competir pelos recursos hídricos”.
A verdade é que plantas, solos e animais fazem parte de um mesmo ecossistema, e cada quinta deve adaptar as práticas à sua realidade. A RVA insiste na não mobilização dos solos, pois arar destrói a estrutura natural, reduz a matéria orgânica e a biodiversidade, e aumenta a erosão e as emissões de carbono.
“Trabalhar com a natureza é sempre complexo e demorado”, admite Rita Nabeiro, da Adega Mayor. “Os resultados não são imediatos e exigem tempo e persistência. Mas refletem a nossa convicção de que é possível produzir vinhos de excelência com impacto positivo e sustentável.” O seu enólogo, Carlos Rodrigues, acrescenta ainda que “ao promovermos o solo, estamos a estimular o seu microbioma natural, o que reforça o terroir de cada vinha e contribui para que os vinhos sejam mais autênticos.”.
Trata-se, portanto, de exaltar o tão almejado terroir e, na Covela, o enólogo Rui Cunha reforça a ideia: “Temos as videiras e os cachos muito mais equilibrados e resilientes. Nos anos mais difíceis, com maior pressão de doenças ou extremos de seca e calor, o impacto na produção e qualidade é menor.”
“De uma agricultura contra a natureza para uma agricultura com a natureza”
Parece ainda cedo para se poder afirmar que a viticultura regenerativa seja uma solução universal para os desafios do setor em tempos de alterações climáticas, mas é, sem dúvida, um dos caminhos mais promissores.
A Sogrape, a maior empresa nacional do setor, será aquela que oferece uma visão mais pragmática: “Acreditamos que a vinha deve ser encarada como um ecossistema vivo, onde cada organismo – dos micro aos predadores – desempenha um papel essencial no equilíbrio natural”, explica António Graça, diretor de Investigação & Desenvolvimento na empresa que tem quintas do Minho à Madeira, e ainda em Espanha, na Argentina, Chile e Nova Zelândia. Para o responsável, estas práticas “melhoram a saúde do solo, aumentam a microbiodiversidade, reforçam a resiliência às alterações climáticas e promovem uma produção mais sustentável”, mas conclui: “Ficar apenas por esse conceito seria redutor. A nossa abordagem assenta numa visão de ecossistema em que o solo é apenas um fator, em equilíbrio com todos os outros. Estamos a evoluir de uma agricultura contra a natureza para uma agricultura com a natureza. Só assim se adquire a resiliência de longo prazo essencial para uma verdadeira sustentabilidade.”
Bons Vinhos
Aqui ficam alguns exemplos de grandes vinhos produzidos segundo estas práticas:
Adega Mayor Pai Chão, branco 2022. Produzido a partir das castas Arinto e Sercial, plantadas na Herdade das Argamassas, “que segue estes princípios de forma rigorosa” conta o enólogo. Foi eleito Melhor Branco de Portugal pela Revista de Vinhos.
Quinta da Covela Avesso Natur 2022. Um 100% Avesso que não só é certificado como biológico, mas também é engarrafado sem adição de sulfitos - substituídos pela flor de castanheiro seco colhidas nos castanheiros da quinta. Tudo muito natural.
Herdade das Servas Sem Barrica, tinto 2023. Muito Alicante Bouschet e as duas Tourigas. Um vinho carregado, intenso mas elegante, de aromas a fruta preta e notas florais.
Tapada de Coelheiros Branco 2023. Estagiou sobre borras finas por 12 meses, nas mesmas foudres onde fez a fermentação. Foudres de carvalho austríaco de 2000 litros. Madeira muito subtil, mas uma textura cremosa, frescura e tensão.
Família Nicolau Regenerativo Tinto 2022. Um novo projeto (de 2018), em Lisboa, de uma família há varias gerações ligadas ao vinho. Já nasceu com práticas regenerativas e os dois vinhos – um branco e um tinto – refletem-no bem: fresco, com notas de frutas vermelhas e um lado herbáceo. Muito equilibrado e com boa acidez.
Folias de Baco Uivo Ânfora 2021. Um branco de curtimenta do Douro, em ânfora, de duas velhas castas autóctones (Donzelinho e Samarrinho). Dez meses de maceração. Um Orange Wine leve e seco, com boa acidez e muita versatilidade à mesa.