Não sabemos quantas vezes o enólogo Paulo Nunes terá ouvido a música Time is on My Side, dos Stones, ao longo destes onze anos - mas devem ter sido muitas, porque teve embalo para esperar que o bom se transformasse em ótimo, o ótimo em extraordinário e este a roçar a perfeição, antes de finalmente anunciar o lançamento do Vindima 2014. O melhor exemplo do que a Casa da Passarella produz e uma bandeira para todos os que defendem o Dão como a melhor região vitivinícola de Portugal.
O mérito, já agora, merece ser partilhado com o proprietário da Casa da Passarella, Ricardo Cabral, que assumiu a quinta em 2007 e deu tempo, condições e carta branca ao enólogo para criar vinhos desta natureza. Importa recordar que a casa é anterior à própria demarcação da região do Dão (1892 face a 1908) e que, para ter um vinho assim, é preciso investir capital durante 11 anos antes de começar a ter retorno. E o investimento não se limita ao tempo: passa também pela preservação das vinhas muito velhas — que dão muito mais trabalho e poderiam ter sido facilmente reconvertidas em plantações mais lucrativas —, pelas condições da adega e pela vontade de produzir vinhos como se faziam antigamente.
Esta é apenas a terceira edição do Vindima, depois de 2009 e 2011, e à partida nada fazia prever que 2014 fosse o ano certo para voltar a fazer o topo de gama da Passarella. Em termos climáticos foi seguramente um ano “desafiante”, com constantes alterações meteorológicas a impedirem a evolução natural das uvas. Entre abril e maio fez muito calor e quase não choveu. Junho terá sido o único mês “normal”, porque em julho choveu bastante e os termómetros teimaram em não subir. Agosto continuou fresco, embora seco, e em setembro voltou a chover e, pior, numa altura em que as uvas ainda não estavam no ponto ideal de maturação. Isso obrigou muitos produtores a adiar as vindimas para outubro – como foi o caso – e nesse mês fez tanto calor que se bateram recordes. Isto para não falar nos constantes sobressaltos e cuidados necessários para prevenir o surgimento de pragas na vinha, exponenciados pela humidade elevada.
Ainda assim, e contra todas as expectativas, o ano acabou por dar origem a alguns vinhos extraordinários – do Mouchão à Quinta da Leda, onde não foi ano de Barca Velha, mas saiu Reserva Especial. Há muitos outros exemplos de norte a sul, mas à medida que todos iam sendo lançados, na Passarella continuavam à espera de que a sua “vindima” revelasse todo o potencial.
Paulo Nunes gosta de afirmar que “todas as grandes decisões que tornaram o Vindima possível” foram tomadas muito antes dele – ao longo de um século, “pelos grandes enólogos que o antecederam” e pelos agricultores, que com “sabedoria popular sempre souberam o que era melhor para a terra”. Foi esse legado que recebeu nas “sete magníficas”, as sete parcelas de vinha da casa, plantadas no sopé da Serra da Estrela, cercadas por floresta e carregadas de castas diferentes e orientações solares distintas. “Por isso tenho vinhas com mais maturação e vinhas com um lado muito mais fresco”, diz. “É como um puzzle” que ele, claramente, gosta de resolver: “O Vindima não é o resultado de uma só parcela, mas a soma do melhor, naquele momento, das várias vinhas”, esclarece.
E se é bem verdade que não se fazem grandes vinhos sem grandes vinhas, também nos parece evidente que não se fazem sem enólogos capazes de imaginar e saber escolher, entre dezenas de castas de diferentes parcelas, aquelas que melhor evoluem nesta conjugação. É aí que acontece o verdadeiro momento da criação e esse, diríamos, é da sua inteira responsabilidade - e mérito.
Já na adega, Paulo Nunes deixou o vinho “seguir o curso natural da evolução”. É claramente um seguidor da escola da intervenção mínima, para quem “menos é mais”, e foi esse, claramente, o resultado deste Vindima: um vinho cheio de músculo, mas ao mesmo tempo de elegância. Mineral e com os mesmos aromas balsâmicos que encontramos noutros vinhos da Passarella. São quase uma assinatura olfativa da casa, e resultado do terroir, não do envelhecimento em madeira. É fresco e, apesar da idade, mantém-se jovem, com muita vida pela frente. Mas sobretudo enche-nos o coração. Não é preciso beber vários copos para se ficar alegre, porque a alegria sente-se ao primeiro gole, ou antes, até, no nariz. Foi para fazer vinhos assim que a humanidade começou a fermentar uvas.