As nuvens que, na véspera, faziam temer o mau tempo dissiparam-se, abrindo caminho a um sol radioso e morno. É o proverbial Verão de S. Martinho em todo o seu esplendor, fazendo reluzir as paredes cor de cal que, debaixo desta cúpula azul e dourada, ganham tons ocre, despertando uma sensação de aconchego que combina na perfeição com o ar tépido de Vila de Frades.
No S. Martinho, vai à adega e prova o vinho, diz o povo na sua imensa, embora nem sempre perceptível, sabedoria. E que melhor sítio para ir à adega e provar o vinho novo do que este onde nos encontramos? Designada a capital do Vinho de Talha, Vila de Frades carrega a história e a tradição dos vinhos feitos pelo processo herdado dos romanos, primeiro, e dos frades de S. Cucufate, depois. Hoje, e como diz a canção, a vila já não tem abades, “mas tem adegas que são catedrais”. Concentremo-nos, que vai começar a liturgia.
VINHO DE TALHA
Num espaço exíguo, rodeada de enormes talhas – os desatentos chamar-lhes-ão ânforas; os desinformados dirão que são potes grandes; não são nem uma, nem outra coisa: são talhas, recipientes de barro, estreitos em baixo, que se vão alargando à medida que se sobe, configurando um grande bojo antes de voltarem a estreitar-se abruptamente no pescoço, que fica logo abaixo da boca –, Teresa Caeiro explica, muito rápida e resumidamente, como se faz este vinho de tradição milenar. “Como podem ver, não é nada científico”, diz.
Teresa, produtora e proprietária da Gerações da Talha, afirma-o com humildade, mas também subestimando a imensa ciência que existe num método que dispensa medições milimétricas, horários demasiadamente rigorosos, e outros constrangimentos ao nascimento livre de vinhos. Se é assim que se faz e se o vinho nasce bem, então é porque o processo já foi de tal maneira afinado, depurado, assimilado e reproduzido, que dispensa exageros no controlo dos procedimentos. Não é falta de ciência, é antes a demonstração que a ciência foi muitíssimo bem aplicada, ao ponto de nem termos de pensar nela.
E o processo é o seguinte: a uva, depois de desengaçada, no moinho ou manualmente, vai para dentro da talha. E fica lá quieta. Ao fim de dois, três dias, começa lá dentro um misterioso borbulhar. Começou a fermentação. Com a transformação do açúcar em álcool, as massas – as grainhas, as películas, os componentes sólidos das uvas – são atiradas para cima, formando uma película dura, deixando o vinho no fundo. Essa película vai impedir que o dióxido de carbono produzido durante a fermentação alcoólica se liberte do recipiente, e é por isso que, neste ponto, é necessário “mexer as talhas”: quebrar o manto e remexer o líquido, atirando as massas de novo para o fundo da talha.
Esta é, apesar das diferenças de procedimentos, uma forma de remontagem. Teresa Caeiro explica que este vinho está em permanente contacto com o oxigénio – daí que as talhas, que são cheias com as massas até ao bojo, tenham de ser atestadas, elevando o conteúdo até junto à boca, garantindo assim que a superfície em contacto com o oxigénio é tão reduzida quanto possível.
ABRAM-SE AS TALHAS!
É precisamente na adega da Gerações da Talha que começa a celebração do magusto. Provemos o vinho. João Enteiriço, marido de Teresa e responsável pela adega e pelo “mexer das talhas”, faz as honras: com uma torneira de madeira e socorrendo-se de um martelo apropriado, empurra o batoque que obstipava o orifício no fundo da talha e, voilà, um pequeno milage: o vinho começa a correr para dentro de um alguidar.
Primeiro vem turvo, muito turvo. “O vinho ainda está a furar pelo meio das massas, vai fazendo o seu caminho”, explica Teresa. Essas massas servem de filtro natural ao vinho novo. Ao fim de alguns minutos, o vinho que escorre, por um fio, da torneira é já muito mais límpido do que aquele líquido acastanhado inicial. Os pequenos copos tradicionais do vinho de talha – cálices sem pé, como aqueles que dantes se encontravam nas verdadeiras tabernas, sobre balcões de pedra já gastos – ostentam agora um vinho amarelo, brilhante. Um vinho magnífico: puro, aromático, sem adornos nem acrescentos, feito de uva e apenas uva.
Entre os petiscos e as provas, ouve-se a voz de João: “Vamos abrir outra.” Outra talha, entenda-se. E logo todos os presentes se aproximam e tentam registar o momento de telemóvel em punho (numa mão; na outra, um pedaço de pão com paio, ou queijo, ou ambos – ou um copo de vinho cheio). “Esta é tinta.” E logo se repete o processo: martelo, torneira, batoque lá dentro e um fio de vinho tinto correndo para um alguidar, como se a talha sangrasse. Brindamos. Provamos. Que maravilha. “O tinto é ainda melhor do que o branco”, exclama alguém. As opiniões dividem-se. Uma coisa é certa: são ambos excelentes. Este vinho tinto novo tem um gigantesco potencial de evolução. João Enteiriço diz que tem planos para ele, mas não entra em detalhes. Confiamos no seu bom-gosto e no seu saber.
O ALMOÇO
Depois de uma manhã em que as provas foram sendo feitas com o aconchego do pão da Vidigueira e os queijos e enchidos da região, é preciso agora forrar o estômago, fazê-lo robusto, prepará-lo para uma tarde longa de magusto, de visita às adegas de Vila de Frades, para provar mais vinhos ao som do cante alentejano, património imaterial da Humanidade. O cozido de grão chega à mesa em taças generosas e fartas, os aromas invadem as mesas, que se espalham entre a adega e o pátio da Gerações da Talha.
As vozes tonitruantes do grupo de cante ecoam pelo espaço. Brinda-se com o vinho o novo. O sol de outono brilha sem queimar. Podíamos estar num cenário da Toscana, apreciando o que há de melhor nesta vida, convivendo e rindo, comendo e bebendo com prazer. Mas estamos em pleno Baixo Alentejo, e isso não faz diferença nenhuma. Aqui a vida também é bela, tanto ou mais do que nos cenários toscanos e idílicos. E então percorre-nos uma extraordinária sensação de pertença e de gosto, pensamos “caramba, isto é nosso”, e quase nos comovemos, com felicidade e orgulho. A vida pode ser deliciosa.
POR VILA DE FRADES
Findo o repasto, os convivas levantam-se com lentidão e a custo. “Isto agora pedia uma sesta”, brinca-se. Mas há que avançar, o S. Martinho só acontece uma vez por ano e o vinho novo não espera. Há mais adegas para descobrir. Na primeira em que paramos, logo na rua a seguir àquela onde almoçámos – aqui, as adegas são numerosas: segundo Teresa Caeiro, existem cerca de 50 produtores de vinho de talha em Vila de Frades, pelo que o difícil é não encontrar uma –, não se faz vinho. Já se fez, em tempos, antes de surgir “a cooperativa”, depois foi-se perdendo o hábito e o gosto. Ficaram os objetos e o espaço, que servem para ajudar a que os de agora melhor compreendam como era antigamente.
Neste pequeno museu informal, onde a mesa comprida ocupa logicamente o espaço central, vemos as talhas, mais de uma dezena, de vários tamanhos. “Não estão vazias”, diz o proprietário, que faz também de guia neste passo da visita, “elas têm pelo menos ar, e talvez algumas teias de aranha”, concretiza, com boa disposição, levando ao riso geral.
Aprendemos, ainda, que a formação “da cooperativa” – a Adega Cooperativa de Vidigueira, Cuba e Alvito – veio, naturalmente, ajudar os pequenos produtores, mas, por outro lado, levou a um progressivo abandono da tradição do vinho de talha. De repente, pessoas que faziam o seu vinho na própria adega, respeitando o método ancestral deixado pelos romanos, podiam simplesmente cuidar da vinha e colher a uva, depositando-a na Cooperativa e arrecadando o quinhão que lhes cabia. Menos trabalho, mais conforto, pagamento certo: num ápice, talhas tornaram-se inúteis e começaram a ser destruídas para fazer pavimentos e paredes.
Foi mais tarde, há cerca de 25 anos, que se iniciou um movimento de regeneração do vinho de talha, com o surgimento da Vitifrades, um concurso local entre pequenos produtores para se eleger o melhor vinho novo do ano. Hoje, com a talha perfeitamente reabilitada e de excelente saúde – o número de produtores certificados e a qualidade dos seus vinhos atesta bem da sua vitalidade –, a Vitifrades é diferente, tornou-se uma feira de vinho de talha cujos moldes pouco diferem de outras feiras de vinho. Mas, à época, desempenhou um papel absolutamente vital, ao impedir que esta tradição milenar se perdesse.
Saímos desta adega e, na mesma rua, 20 metros adiante, outra adega prepara o seu magusto. É a Taberna dos Arcos, da Adega Cooperativa, um espaço impressionante, onde encontramos a mais antiga talha que se conhece na região, datada do século XVII. Ainda hoje faz vinho, como fazia há quase 400 anos. Aqui, não entramos, caminhamos mais 30 metros e vamos à seguinte. É uma adega pequena, modesta, claramente vocacionada para produzir pouco e para quem é da casa. Não tem pretensões comerciais. Prova-se o vinho. É distinto dos anteriores. E é notável como a diferença e os cuidados no decorrer do processo podem fazer tamanha diferença entre vinhos que são feitos com uvas semelhantes, de vinhas semelhantes, em terroirs cuja composição é aproximadamente a mesma. Enquanto se prova, ouve-se o cante, agora com a presença de uma voz feminina – sai trémula, “estou entupida”, queixa-se a cantadeira. Bebemos mais um copo. Importa é não perder o alento.
Mais umas dezenas de passos, vira-se a esquina, outra adega aberta – aberta, mas ocupada, com outra visita. “Esta é uma clássica de Vila de Frades”, explica alguém. É a Adega de Justino Damas. Não provamos hoje o vinho, fica para uma próxima. Mas não tardamos a parar e a entrar. Agora, não é uma adega, esta é uma taberna: a Taberna do Enteiriço – de João Enteiriço, que, como vimos, também faz vinhos –, onde encontramos tudo o que o nome promete, num espaço renovado com bom gosto, onde a remodelação não significou, felizmente, a substituição do que é genuíno pelo que é moderno.
Os traços antigos estão todos lá, dos tampos de mármore nas mesas aos bancos de madeira, dos arcos em tijolo burro às paredes rebocadas à colher, tudo pintado de branco. Um sítio novo, “inaugurado há coisa de um ano”, que nos permite imergir numa realidade passada, de tempos lentos e chão de tijoleira. É na Taberna que provamos vinhos de talha engarrafados. São as versões anteriores dos vinhos que provámos de manhã e ao almoço, na Gerações da Talha. Sem surpresa, são vinhos vivaços, mas muito saborosos e até delicados. Na Talha, branco, tinto e palhete, Farrapo branco e Farrapo tinto, todos eles merecem nota de excelência. Contudo, é o Atão, Vás Tinto? quem, pela originalidade e pelo arrojo, conquista mais corações e palatos. Será um palhete? Será um clarete? Será um rosé? “Não é nenhum dos casos”, explica João. “É um vinho branco, exclusivamente feito com Antão Vaz.” Ok, mas então e a cor e este sabor, com twist? “Escolhemos uma talha de vinho tinto de excelência, de Alfrocheiro. Depois de esvaziada, voltámos a depositar lá as massas, já sem vinho. Em seguida, adicionámos o vinho de Antão Vaz e fizemo-lo passar pelas massas do Alfrocheiro. O resultado é este vinho branco filtrado em massas tintas.” É tão criativo e surpreendente quanto delicioso. Um verdadeiro refresco, mesmo numa tarde de outono.
ATÉ PARA O ANO!
Continuemos, que a visita está quase a terminar. Descemos a rua e cumprimentamos vizinhança – o País das Uvas, restaurante típico que possui, numa cave anexa, a Cella Vinaria Antiqua (vale muito a pena a visita, que permite compreender como era aqui uma adega há mais de mil anos; e também vale a pena conhecer os vinhos Honrado, feitos nas talhas espalhadas pelo restaurante), acolhe também a celebração do S. Martinho – e prosseguimos. “A próxima é a Adega Horta Abaixo.” E é aí que encontramos José Miguel Caeiro e as suas criações singulares. A adega, apesar de singela, quase austera, tem tudo o que é preciso: uma mesa comprida ao meio, talhas em redor, junto às paredes, e duas torneiras com vinho a correr, uma de branco, outra de tinto. “Foram abertas ontem, tanto uma como a outra.” O proprietário – produtor, viticultor e enólogo – antecipou a abertura para garantir que o vinho correria limpo quando chegassem as visitas.
“Que pomada!” A qualidade, tanto do branco como do tinto, impressiona os convivas. Há perguntas, querem saber se está à venda. Está, mas não há garrafas. “Este não é engarrafado”, diz o produtor. “Ainda”, e depois ri-se. Haverá planos; os planos não foram revelados.
Os homens do cante chegam-se à mesa, que é o centro de tudo e onde os petiscos aguardam. Canta-se de novo, “Vila de Frades já não tem abades, mas tem adegas que são catedrais”. Soa como um hino – não um hino patriótico, mas a canção de uma gente, de uma comunidade, de uma tradição. Canta-se com orgulho, de peito e barriga cheios. A visita está a terminar, “para o ano há mais”. Nas torneiras, os vinhos novos correm de fininho para os alguidares, à espera que alguém encha os jarros pousados na mesa. Há quem prometa voltar. Há até quem queira ficar.
PARA TODOS
Para quem quiser viver a experiência da prova dos vinhos novos no S. Martinho, a Gerações da Talha abre as suas portas nos dias 14, 15 e 16 de novembro e disponibiliza vários tipos de programa, que incluem provas à porta fechada, rotas das adegas, celebração com petiscos tradicionais e bar de vinhos, entre outras atividades cujo epicentro é o vinho de talha novo.