Conversas

Barca Velha. O mestre, o sucessor e a próxima era na Casa Ferreirinha

Luís Sottomayor e Lourenço Charters são o passado, o presente e o futuro da Casa Ferreirinha. Os dois enólogos sentaram-se com a Must para falar da passagem de testemunho e revelar surpresas inesperadas.

Luís Sottomayor e Lourenço Charters revelam a próxima era na Casa Ferreirinha Foto: DR
11 de dezembro de 2025
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Lourenço Charters é o senhor que se segue na Casa Ferreirinha e, em breve, terá a responsabilidade de tomar a decisão mais mediática do vinho português: declarar – ou não – um Barca Velha. Em 73 anos apenas 21 colheitas foram distinguidas com Barca Velha, e só 18 chegaram a ser Reserva Especial, o que acontece quando o vinho é excecional, mas não atinge o patamar máximo. Nos restantes 34 anos não houve qualquer distinção, o que explica em muito a aura deste vinho icónico. 

Por agora, a decisão permanece nas mãos de Luís Sottomayor, diretor de enologia da Sogrape no Douro, que entrou para a casa em 1989. Ainda trabalhou diretamente com o pai do Barca Velha, Fernando Nicolau de Almeida, e com José Maria Soares Franco – desde 1952, apenas os três tiveram essa responsabilidade.  

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Curiosamente, Lourenço nasceu no ano anterior (1988) à primeira vindima de Luís na Casa Ferreirinha, mas apesar de pertencerem a gerações muito diferentes, as suas histórias e a paixão pelo vinho e pelo Douro são, de alguma forma, muito semelhantes. 

“Cresci numa quinta aqui no Douro, onde se fazia vinho”, conta Luís Sottomayor. “O momento da vindima sempre me fascinou: a preparação das pipas, a apanha, a pisa a pé nos lagares, a prensagem…”. Além disso, o pai foi um dos primeiros enólogos portugueses com formação académica, tendo estudado em Dijon logo a seguir à Segunda Guerra – uns dois ou três anos antes de Fernando Guedes, pai da atual geração à frente da Sogrape.  

Lourenço não nasceu no Douro, o que não fez diferença: “O meu avô tinha uma quinta no Douro para onde ia sempre que podia. Somos 11 netos e eu era o único que o acompanhava em todas as vindimas.” Tal como Luís, desde criança não se imaginava a fazer outra coisa e, antes do convite, até já tinha estado na Sogrape, em 2020/21, mas com passagens pela Quinta da Romeira, em Lisboa, e Azevedo, no Minho. Os dois não chegaram a trabalhar juntos, embora Luís seja o primeiro a admitir que a escolha de Lourenço para o suceder “foi uma decisão pessoal”. 

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Trabalham juntos há mais de um ano. Isso significa que o Lourenço passou o período experimental?  

Luís Sottomayor: Às vezes irrita-me um pouco, e consegue ser demasiado cerimonioso (risos)… Mas não tenho a mínima dúvida de que fizemos a escolha certa.  

Lourenço Charters: Só o sou com o Luís. Mas posso ser menos. 

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LS: Tens de ser… 

E o Lourenço? 

LC: Qualquer mudança é difícil, e nunca tinha trabalhado diretamente com o Luís, mas tenho a certeza de que tomei o passo certo. Creio que tem corrido cada vez melhor. 

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O Lourenço entra para uma passagem de testemunho, mas o Luís não se vai reformar amanhã, pois não?  

LS: Temos de começar já a preparar a minha saída. Eu estive muitos anos a aprender, quase 15, até assumir a enologia toda. Agora tenho mais de 60; veremos... Ainda faltam alguns anos. 

O que o fez regressar à Sogrape, sabendo que tinha acabado de assumir um papel de grande responsabilidade no Esporão? 

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LC: Foi um desafio irrecusável. Primeiro, porque tenho uma paixão enorme pelo Douro; segundo, porque a possibilidade de um dia fazer Barca Velha, trabalhar com a equipa do Luís e com a Casa Ferreirinha – e com todos os vinhos do Porto que produzimos – é algo único para qualquer enólogo. 

Por falar nisso, podemos já saber quando é que o Luís vai declarar o Barca Velha 2017? 

LS: Já temos ideia do que o vinho é, na verdade. Agora, sobre a comunicação, não somos nós que decidimos. Mas temos tempo; o vinho é bom, pode aguardar. 

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LC: O Luís não disse que seria Barca Velha; apenas que tinha ideia do que seria e que o vinho era bom. 

O que poderá o Lourenço trazer de novo à equipa? São tempos muito diferentes de quando o Luís entrou.  

LS: É verdade, mas também não ficámos parados. Da equipe inicial, que ainda trabalhou com o Sr. Fernando Nicolau de Almeida e com o José Maria Soares Franco, já só restamos dois, eu e o Carlos Machado. O Lourenço foi a mais recente aquisição e nós procuramos sempre gente que traga novas ideias e conhecimentos, mas também que se saiba adaptar ao estilo e à história da Casa Ferreirinha. Foi isso que vimos no Lourenço: uma pessoa com competência e vontade de respeitar tradição. 

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Sinto que nestes últimos anos o Luís também mudou um pouco o perfil dos vinhos. Diga-me se não concordar, mas diria que no último Legado sentia-se menos madeira e o Barca Velha estava mais leve… 

LC: A Casa Ferreirinha nunca seguiu modas – nunca fizemos os vinhos “Parker”, carregados de madeira, como não fazemos vinhos naturais. Temos um ADN muito próprio, mas evidentemente que existe uma evolução e vão sempre existir pequenos ajustes, pelo ano, pela viticultura, pelo gosto do enólogo principal…  

E qual a sua opinião sobre estas novas tendências de vinhos mais leves, com menos álcool… 

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LC: É verdade que a minha geração de enólogos tende a preferir vinhos com menos álcool, mas acho que esta característica da Sogrape, no Douro, de seguir muito o terroir, mostrar a origem dos vinhos e não andar em modas, ainda me encanta mais. Dá mais trabalho, é preciso mais atenção, mais detalhe, mas é isso que estou a aprender com o Luís e com a equipa. 

LS: Quando o José Maria sucedeu ao Sr. Nicolau de Almeida fez algumas coisas diferentes, tal como eu, também terei feito as minhas, porque cada um tem as suas características. Agora, o que é importante é nunca andarmos aos zig-zags. Isso não quer dizer que não vamos acompanhando as tendências, e o melhor exemplo é o Castas Escondidas. 

LC: Esse vinho nasceu de vinificações que já fazíamos, em busca de perfis diferentes. Castas que tinham pouca expressão no Douro ganharam nova vida. Hoje replantamos muitas delas, não só em mistura, mas também separadas, em diferentes altitudes e exposições.  

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Para preservar esse património genético?  

LC: A Casa Ferreirinha tem essa obrigação. Somos o produtor mais antigo a fazer DOC Douro e estas castas ganharam um novo protagonismo. Temos muitos outros produtores que já nos perguntam como é que está a correr o Rufete, a Malvasia Preta, o Bastardo, a Tinta Amarela… O Castas Escondidas ajudou neste processo, porque obviamente não se pode ter este cuidado para depois apagar anonimamente as castas num vinho de grande volume. 

Têm mais algumas ideias diferentes na manga?  

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LS: Estamos sempre à procura de fazer coisas novas, e fazemos, sempre que alguma casta se destaca pela diferença e qualidade. Ainda recentemente fizemos um Tinta Francisca, um Touriga Fêmea e dois monocastas de Touriga Francesa e Touriga Nacional - do mesmo ano, mas com um perfil totalmente distinto, a mostrar bem o carácter de cada uma das castas. Ultimamente temos trabalhado cada vez mais ligados à viticultura, com reconversões de vinhas, plantações em altitude e aquisição de propriedades mais altas para precaver as alterações climáticas. Há uma revolução na viticultura do Douro para assegurar que, no final do século, vamos continuar por aqui, e a produzir vinhos de grande qualidade. 

Por falar em altitude o portfólio da Casa Ferreirinha é bastante extenso, mas sinto falta de um grande branco.  

LS: Não nos podemos esquecer que somos líderes em brancos na região do Douro. Mas apesar de tudo, é verdade, estamos a trabalhar para ter um grande vinho branco. Não sei se ao nível de um Barca Velha, mas um vinho branco de grande qualidade. 

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LC: O Vinha Grande branco já é um vinho muito sério, com fermentação em barrica e um grande carácter. E também já tivemos o Antónia Adelaide Ferreira branco. Quantos anos lançámos, Luís?  

LS: Lançámos em 12, 13, 14, 15 e 16. Depois houve a decisão de parar, mas as vinhas continuam lá, e a complexidade das uvas mantem-se, todos os anos. Estamos a trabalhar nisso.  

Para breve?  

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LS: No vinho nunca nada é para breve. Serão sempre uns bons meses.  

Sobre o Legado (ndr. o outro topo de gama que a Sogrape produz no Douro, e que nasce exclusivamente nas vinhas velhas da Quinta do Caêdo), o Luís costuma dizer que faz duas ou três passagens durante a vindima, à procura de colher as uvas no seu melhor momento. Não seria mais fiel ao espírito do lugar (e do vinho) tentar fazer a colheita num momento de equilíbrio da vinha? Mesmo que algumas das castas estivessem mais verdes e outras mais maduras?  

LS: Tem razão, mas repare, as vinhas velhas do Caêdo estendem-se por 8 hectares, com diferentes exposições solares e diferentes altitudes. Fazemos essas passagens porque estamos perante níveis de maturação muito diferentes. Dito isto, em cada uma dessas passagens vamos ter esse equilíbrio, porque não selecionamos as castas.  

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Ou seja, não fazem um equilíbrio, fazem dois ou três, é isso?  

LS: Sim, vamos buscar o equilíbrio de cada micro terroir dentro daquele terroir fantástico que é o Caêdo. Não era possível de outra forma. Depois equilibramos o conjunto, porque juntamos tudo ao fim de 24 meses de estágio, mais seis meses em conjunto.  

No seu trabalho, qual é a decisão mais difícil que tem de tomar? Imagino que possa ser a declaração do Barca Velha?  

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LS: Não. As decisões mais difíceis vão ser sempre as decisões humanas. As que dizem respeito a pessoas. O vinho é um amigo que nunca nos deixa mal. Mas é preciso entendê-lo. Tem momentos em que está mais bem disposto, mais saudável, e outros em que não - e temos de ajudá-lo a ultrapassar esses momentos.  

E isso faz-se com muitos anos de experiência?  

LS: Vai-se fazendo com intuição e com experiência. Não é nada que se aprenda na faculdade.  

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O Lourenço está a aprender isso consigo?  

LS: Ele já trazia experiência, muita intuição e paixão. Isto também nasce com as pessoas.  

O Luís reforça sempre que a decisão do Barca Velha é exclusivamente da enologia, e, na realidade, foi quem transformou o vinho no ícone que é hoje. Portanto, tem um estatuto que o Lourenço não tem. Acha que quando chegar a vez dele, vai conseguir manter essa independência?  

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LS: Não vai ter o mínimo problema. E temos de perceber que também não vai estar sozinho nessa decisão, vai ficar com uma equipe fabulosa. 

LC: Ter um professor como o Luís que, como disseste, foi quem tornou o Barca Velha num ícone, ajuda. 

LS: O Lourenço está a ser preparado de uma forma que eu não fui na altura. Na altura era tudo mais centralizado no enólogo responsável. Apesar de ser eu que fazia os vinhos há muitos anos, nunca aparecia. O Lourenço, pelo contrário, já comunica os vinhos, dá estas entrevistas. Está tudo a ser preparado para termos uma transição mais suave. 

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Na opinião do Luis, qual será o maior desafio que o Lourenço terá de enfrentar nos próximos anos?  

LS: Diria que o maior desafio são as alterações climáticas. É sobre isso que temos vindo a trabalhar, como estávamos a falar há pouco. Procurando preparar, desde já, a segunda metade do século XXI.

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