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Este poderá o ser o homem em melhor forma do mundo

O desafio: correr 160 quilómetros em 24 horas, subindo montanhas, atravessando neve e gelo, carregando pesos. O objetivo? Ganhar um milhão de dólares. Bem-vindo ao Campeonato Mundial Spartan Ultra, um dos eventos mais exigentes do planeta, no qual Jonathan Albon, o atleta britânico de corridas com obstáculos, é o homem a vencer.

Foto: João M. Faria
27 de setembro de 2019 | William Leith
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Jonathan Albon poderá ser a pessoa em melhor forma do mundo. Eu estou a falar com ele dentro de uma grande tenda insuflável, quase 50 quilómetros a oeste de Reiquiavique, na Islândia. Lá fora há uma tundra gelada rodeada por uma paisagem de montanhas acidentadas cobertas de neve. Quando sair da tenda, Albon tentará correr 160 quilómetros através da tundra e das montanhas. Tem 24 horas para fazê-lo. Se correr os 160 quilómetros antes dos seus concorrentes, ganhará um milhão de dólares. O evento em que Albon participa, o Campeonato Mundial Spartan Ultra, é uma corrida de obstáculos e por isso ele não terá apenas de subir montanhas e correr através de neve e gelo. A cada cem metros, aproximadamente, terá de levantar objetos pesados, escalar com a ajuda de cordas ou rastejar sob arame farpado. Terá de atirar lanças. Terá de pegar num balde cheio de gravilha e correr com ele. O circuito foi concebido de modo a levar as pessoas em melhor forma do mundo até ao limite das suas capacidades físicas e mentais.

Foto: Instagram @jonalbon

Albon tem 29 anos. É um dos dois ou três melhores atletas radicais do mundo. É originário de Essex, mas vive em Bergen, na Noruega, com a mulher norueguesa, Henriette. Sim, ele já correu maratonas (em abril do ano passado participou na "lenta" maratona de Bergen, com 500 metros de escalada, em 2h30m30s; já a completara anteriormente em 2h26m). Para ele, uma maratona é um treino para outras corridas mais exigentes. O seu principal impulso é andar depressa, deslocando-se com dificuldade e escalando em condições terríveis – subindo montanhas cobertas de neve e de gelo, por exemplo, durante a noite, sob chuvadas torrenciais e sempre com um capacete de mineiro na cabeça. Poderíamos descrevê-lo como o mais radical dos atletas radicais. Ele já venceu o Campeonato Mundial Skyrunning Ultra e treina nas montanhas em redor de Bergen.

Albon tem 1,77 metros de altura e pesa cerca de 66 quilos. Tem menos de 7% de massa gorda, acha ele. É magro e tonificado, mas igualmente sólido: "Um misto de escalador com corredor de maratonas", afirma. Parece leve. Tem vestido equipamento de corrida justo. Com vestuário do dia a dia não se destacaria no meio de uma multidão. Com efeito, ele parece o epítome de um homem normal. Quando eu lhe peço que se descreva, uma das palavras que mais usa é "humilde". Ele é um tipo humilde com um superpoder extraordinário. Este ano, Albon correu sob neve, chuva e sol, com um frio gélido e um calor abrasador, pelo mundo fora. Já fez corridas curtas e longas. O máximo que já correu de seguida foi 170 quilómetros. Em 2018 venceu 17 das 21 corridas nas quais participou. Na semana passada, Jonathan correu 50 quilómetros com obstáculos "na ‘sauna’ que é a Malásia". E ganhou. Mais importante, Albon também venceu o Campeonato Mundial Spartan, no Lago Tahoe, e o Spartan Trifecta, um conjunto de três corridas de obstáculos em três dias, em Esparta propriamente dita. Numa tentativa de chamar a atenção para o desporto das corridas com obstáculos (OCR), o empresário Joe De Sena, CEO da Spartan Race, ofereceu um milhão de dólares a quem conseguisse vencer a trindade do Campeonato Mundial, o Trifecta e o horrendo Ultra desde que o vencedor pudesse correr os 160 quilómetros da competição. Albon ganhou cerca de 45 mil libras em prémios em 2018 e ganha cerca de 15 mil libras graças a patrocinadores, como a marca de sapatos finlandesa VJ Sport (ele ajudou a desenhar um dos seus modelos), a Clif Bar, a Dryrobe e a Gore.

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Foto: Instagram @jonalbon

E aqui estamos nós, a poucos minutos do início. Albon diz que há de chegar a uma altura da corrida em que saberá se consegue, ou não, superar o desafio dos 160 quilómetros. Muito será decidido pelo seu estado de espírito. Ele só tem uma lesão: uma articulação inflamada no dedo grande do pé direito. É dolorosa, mas o médico disse-lhe que não vai piorar. Por isso, ele corre, mesmo com dores. Durante as nossas conversas, ele fala sobre "divertir-se" quando corre. Mas também sente dor, como qualquer outra pessoa. Nas primeiras seis a oito horas, diz, "estamos, lentamente, a ficar cada vez mais cansados, e pensamos em aguentar mais um pouco durante sabe-se lá quantas horas. Mas quando ficamos mesmo rebentados e estamos mesmo, mesmo, cansados, isso deixa de ser um problema e limitamo-nos a seguir em frente". A dor silencia o ruído da mente. Se esta corrida o assusta? "Eu não gosto mesmo nada da duração desta corrida", diz, fazendo uma pausa. "Estou assustado." Dois dos rivais de Albon, outros que também podem ser os homens em melhor forma do mundo, estão dentro da tenda. Um é o canadiano Ryan Atkins que, segundo Albon, tem ligeiramente mais força na parte superior do corpo, mas é ligeiramente menos rápido. O outro é Robert Killian que me diz que não vai competir no nível Ultra porque está lesionado: tem um dos nervos ciáticos presos e dói-lhe imenso correr. Killian só vai correr 50 quilómetros à volta do circuito com um colete de cota de malha metálica de 10 quilos. Ele entrega-mo. É pesado. Ele vai usá-lo em homenagem aos 22 veteranos do exército norte-americano que se suicidam todos os dias. Eu consigo ver, pelo menos, um veterano na tenda com uma perna prostética. Kacey McCallister também cá está – perdeu as pernas ao ser atropelado por um camião quando tinha seis anos. Agora é famoso pelas suas palestras de motivação. Juntamente com 500 atletas não radicais – apenas pessoas em ótima forma e que apreciam desafios –, ele vai tentar completar uma volta no circuito de 10 quilómetros, usando os nós dos dedos para projetar o corpo em frente.

A Spartan Race tem muitos significados. É um enorme negócio comercial – a empresa, fundada por Joe De Sena, antigo negociante de Wall Street, organiza corridas em mais 40 países. O preço de inscrição numa corrida Spartan é cerca de 80 libras. Há cinco corridas Spartan no Reino Unido e uma na Irlanda, em 2019. Os concorrentes precisam de estar em forma, mesmo ao nível mais básico, e de equipamento que podem adquirir no website da Spartan. Contudo, a Spartan é mais do que uma empresa: é uma espécie de culto. De certa forma, é sobre motivação e sucesso. Atrai gente esforçada. E quem quiser participar na corrida da Islândia, no Campeonato Mundial Ultra, tem de pagar voos, alojamento e transporte desde Reiquiavique até este local gelado rodeado por picos acidentados e, por isso, além de estar em boa forma física, também precisa de estar em boa forma financeira.

Está um frio de gelar aqui. O dia nasce às 10h00. Assim que saímos da tenda, o vento fere-nos a pele. Quando saio da tenda e atravesso a tundra até à linha da partida, começo a perceber que este evento é mesmo sobre condições extremas. Albon, Atkins e os outros atletas de elite estão a preparar-se. Acabámos de ver uma cerimónia na tenda: um tipo islandês subiu para cima de um palco, rugiu como um viking e depois os atletas desfilaram com bandeiras nacionais, como nos Jogos Olímpicos. Agora, um homem usando uma tanga, um capacete espartano e pouco mais aproxima-se da linha de partida com um microfone. Há algumas equipas de filmagem. O homem do capacete tem o six-pack mais bem definido que vi na minha vida. Ele fala sobre os famosos 300 espartanos da batalha das Termópilas. "Vão treinar a vossa mente e o corpo segui-la-á", diz aos atletas. Em seguida, uma mulher canta o hino nacional islandês, em homenagem ao local onde decorre o Campeonato, e o hino nacional dos EUA, claro, porque tal como as suas principais rivais, a Tough Mudder e a Rugged Maniac, a Spartan Race é uma empresa norte-americana.

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Foto: Instagram @jonalbon

Pum! A corrida começa. Albon corre pela tundra. Até descobrir a paixão pela corrida ele era "um miúdo nervoso com uma vida normal", como admite. Filho de um inspetor de Great Dunmow, em Essex, é o terceiro de quatro filhos. "Eu era nervoso. Um pouco tímido. Não gostava muito de sair. Era um miúdo sem grandes ambições que não sabia o que fazer com a vida." Jonathan jogava hóquei porque o irmão mais velho também jogava. Depois das aulas, ele estudava inspeção de edifícios porque era o que o pai lhe mandava fazer. Frequentou a universidade, em Chelmsford. Vivia em casa. Quando se licenciou, começou a trabalhar para o Metropolitano de Londres. Inspecionava os ladrilhos, em busca de danos. "Quando eu me tornei adulto", diz, "percebi que a vida era muito mais do que trabalhar e ganhar dinheiro para comprar coisas." Albon começou por correr de casa para o trabalho. "Havia algo de especial em correr", diz, salientando que isso "era tão simples". Depois, começou a participar em corridas – uma meia-maratona, corridas nas montanhas no País de Gales e no Lake District. Adorou. Nunca mais parou. "Tem sido como uma ‘onda’", diz-me. A ‘onda’ transporta-o. "Eu nunca tive um sítio onde quisesse ir ou grandes objetivos", afirma. "Sempre me limitei a ir, todos os anos, e a divertir-me." Já ganhou prémios – dezenas de milhares de libras por ano. Demitiu-se do seu emprego e mudou-se para a Noruega e falou com Henriette sobre a ideia de se tornar um atleta radical profissional. "Podemos mesmo sentir uma certa lucidez quando estamos a correr no meio da natureza, nas montanhas. Ficamos com um certo brilho e tudo parecer estar bem", diz. "Sentimo-nos fortes e maravilhosamente bem por estarmos ali. Tudo parece encaixar", acrescentando: "Todos somos viciados em endorfinas. Esta é a minha forma de ter as minhas endorfinas." Agora, lá vai ele, a caminho das montanhas. Instantes mais tarde, está fora de vista.

Volto para a tenda e encontro o CEO da Spartan, Joe De Sena. É um homem que vive para a motivação. Tem um podcast de motivação e escreve livros de motivação. No podcast, ele entrevista pessoas como Wim Hof, o holandês que descobriu as vantagens da exposição ao frio extremo. (O nosso organismo converte a gordura branca, que é má, em gordura castanha, que é boa.) No seu livro The Spartan Way, De Sena fala sobre o agoge, o programa de treino espartano que é igualmente um código de conduta. Ele gosta de códigos. "Evitar tudo o que é ligeiramente desafiante e desconfortável transformou-nos numas versões boneco de peluche de nós próprios – macios, gorduchos e passivos", escreve. "Isto parece-me bastante patético." Ele cita a teoria de Einstein, segundo a qual a "adversidade apresenta os homens ou as mulheres a si próprios". Ele apregoa os benefícios da dureza e da gratificação adiada. Joe parece um homem mais ou menos normal, mas rijo. Tem 49 anos. A característica que mais se destaca nele é carregar um kettlebell [pequeno e pesado equipamento de uso manual para exercitar os músculos do corpo] de 20 quilos. Anda sempre com ele. As outras pessoas, explica, não estão sempre a treinar, mas ele está. Peço-lhe que me dê o peso. É incrivelmente pesado – tem um terço do peso de uma pessoa e é do tamanho de um melão.

Foto: Getty Images
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As pessoas andam sempre à volta de Joe De Sena: ele é o centro do mundo Spartan. "Aquele é o Bob, o meu sogro", diz-me. Bob é grande e aparenta ser forte – foi piloto da marinha. De Sena tem voado pelo mundo fora para estar presente nas corridas Spartan. Descreve-me os seus últimos dias: "S. Francisco – Singapura; Singapura – Malásia; Malásia – Singapura; Singapura – Japão; Japão – Hong Kong; Hong Kong – China; China – Hong Kong. E acabo de aterrar aqui." Joe De Sena fala-me sobre as 275 corridas Spartan que organizou, este ano, em 41 países. "O Bob pergunta-me: ‘Por que fazes estas viagens loucas?’ E eu digo-lhe: ‘Tem de ser.’" De Sena fala-me sobre si. Cresceu em Howard Beach, em Queens, um local onde foi filmada parte do filme Tudo Bons Rapazes. "Era um bairro com grande respeito pelas coisas difíceis da vida", diz. "Acordavam cedo. Lutavam. Muitos deles quando faziam alguma coisa errada eram presos." O pai de Joe De Sena trabalhou em fretes aéreos e camionagem. A mãe interessava-se por yoga e meditação. "Ela abordava aquilo como um espartano", comenta. Mr. e Mrs. De Sena tiveram uma separação terrível. Em The Spartan Way, De Sena escreve: "Os meus pais começaram, literalmente, a lutar por causa de dinheiro. A minha mãe foi parar algumas vezes ao hospital." Contudo, Joe De Sena encontrou um mentor: um vizinho conhecido como Joe "A Orelha" Massino, assim chamado porque, tal como um padrinho da Máfia, não se podia mencionar o seu nome, sendo necessário as pessoas tocarem numa das suas próprias orelhas para se referirem a ele. "A Orelha" pediu a De Sena que lhe limpasse a piscina e, de repente, De Sena acabou por limpar as piscinas do bairro todo. "A Orelha" deu-lhe conselhos. "Esforça-te sempre mais. Não te limites a limpar a piscina. Arruma a zona à volta da piscina. Faz o que for preciso para te tornares indispensável. Dedica-te ao teu trabalho." De Sena levou estes conselhos consigo para a Universidade de Cornell e, por fim, para Wall Street. Em Wall Street trabalhou num banco e depois fundou a sua própria empresa, a Burlington Capital Markets.

Ele diz ter aplicado os seus métodos de limpeza de piscinas aos negócios financeiros. "Basicamente, o trabalho era conhecer potenciais clientes – fundos de risco, fundos mutualistas, bancos – e convencê-los a trabalhar comigo." Os seus clientes incluíram os bancos de investimento Goldman Sachs e Morgan Stanley. "Vai perguntar-me: por que raio haveria o Goldman ou o Morgan de querer negociar consigo? É a mesma coisa nesta corrida. As pessoas poderiam ir treinar ao ginásio. Poderiam correr no quintal. Mas as pessoas precisam de motivação. Por isso, nós fazemos o trabalho extra que eles não querem fazer. Na verdade, estamos apenas a carregar em botões – mas mais acima e mais além." Limitando-se a carregar em botões, De Sena deixou de estar em forma. Um dia, o elevador avariou-se e ele usou as escadas. Conheceu um homem que subia e descia as escadas a correr. Este foi o ponto de viragem da sua vida. Ele descreve este homem como "um Adónis. Six-pack. Capa da Men's Health". De Sena também começou a subir e descer escadas a correr. Participou em corridas. Participou em corridas mais difíceis. Anteviu uma oportunidade de negócio. Abandonou Wall Street. Queria fundar uma empresa de corridas. Mas como iria chamar-lhe? Joe De Sena diz que o nome lhe surgiu no primeiro dia. Pergunto-lhe quando dinheiro a Spartan ganha por ano. Ele responde: "1,2 milhões de pessoas a correr, 110 dólares por pessoa."

O diretor de produto da Spartan, um australiano chamado David Watson, aparece. É este o homem que concebe os obstáculos e filma os eventos. De Sena diz ter decidido fazer um acordo com Jonathan Albon: se ele não conseguir correr os 160 quilómetros, pode receber 50 mil dólares por correr 145. Ele diz a Watson para percorrer o circuito num jipe, encontrar Albon e fazer-lhe a oferta. "‘Olha, Jon, podes receber 50 mil por 145 quilómetros, mas tens de escolher.’ Talvez isso o leve a esforçar-se um pouco mais." Dizem-nos que, neste momento, Albon está a completar uma volta em uma hora e 23 minutos. Mesmo que isto seja verdade, ele não pode continuar a correr assim todo o dia e toda a noite. Por isso, saltamos para o jipe e vamos à procura de Albon para lhe fazer a proposta. Percorremos trilhos lamacentos. Chegamos a um obstáculo, uma grande estrutura de escalada, supostamente à frente de Albon. Alguns minutos mais tarde, Ryan Atkins aparece. Vem a subir a encosta lamacenta. Acabámos de nos desencontrar de Albon. Por isso, voltamos para o jipe e tentamos perceber onde poderemos intercetá-lo. Chegamos ao sítio onde os participantes descem uma colina com a ajuda de uma corda, pegam num balde cheio de gravilha e correm com ele num círculo. Pego no balde. É diabolicamente pesado. Ryan Atkins aparece. Pega no balde e segue. Ele é o apogeu da boa forma. No entanto, voltámos a desencontrar-nos de Albon. Por fim, encontramos Albon e fazemos-lhe a proposta. Watson corre atrás dele, filmando a cena com o seu smartphone. Albon diz: "Como respondo? Com um pombo-correio?" Decido sair do jipe e caminhar pelo circuito. Vejo os atletas em forma, mas não de elite, passarem. As pessoas reconhecem-se de corridas Spartan anteriores. Cumprimentam-se, chocando os punhos: "Singapura agoge!" Estamos num evento baseado na capacidade do corpo para suportar a dor. Também é uma espécie de festival de gente esforçada.

Foto: Instagram @jonalbon
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Falo com Haley Shapley, uma escritora especializada em fitness, de Seattle. Ela veio dar uma volta ao circuito. Está a escrever um livro sobre a força feminina com o título provisório de Her Strength. Pratica crossfit cinco dias por semana. Anda de bicicleta, caminha e nada. Ela corre pela colina acima pelo trilho gelado. Eu continuo a andar e experimento alguns dos obstáculos. Há pedras para carregar. Parecem presas ao solo. Vejo pessoas arrastarem blocos de gelo. O sol põe-se cedo. Fico ao lado de uma estrutura de escalada e observo pessoas usando as cordas para se içarem. Kacey McCallister aproxima-se da estrutura. Iça-se com a ajuda das cordas. Mas ele não tem pernas para se equilibrar. Não sei como vai passar para o outro lado da estrutura quando chegar ao topo. Ele faz força, puxa e lá consegue saltar para o outro lado. Eu acho que compreendo o espírito disto. É sobre sermos resistentes. É sobre fazermos coisas que nunca achámos possíveis até experimentarmos. É sobre apreciarmos a sensação de estarmos fora da nossa zona de conforto. Caminho de volta para a tenda através da escuridão. Vejo os atletas de não-elite chegarem após a sua volta de 10 quilómetros. Parecem felizes. Haley Shapley chega. Ela diz-me que subiu um trilho gelado a correr, prosseguiu pela crista da montanha e depois desceu um caminho tão escorregadio que ninguém conseguiu manter-se em pé – todos escorregaram encosta abaixo sobre os traseiros. Alguém quase chocou com ela, mas ela afastou-se mesmo a tempo. Está delirante.

No final, Jonathan Albon não ganhou um milhão de dólares. Não ganhou nada. Ele não demorou a perceber que não poderia correr 160 quilómetros e lidar com os obstáculos em 24 horas. A sua primeira volta demorou uma hora e 30 minutos. Ele precisaria de correr uma média de uma hora e 34 minutos para completar a corrida. Desistiu da corrida ao fim de dez horas, na escuridão gélida, depois de correr 69 quilómetros. Ryan Atkins chega ao limite. Começa a desfazer-se, física e mentalmente, ao fim de 132 quilómetros. Desiste, a vomitar e desorientado, mas conquista o primeiro lugar e ganha seis mil dólares dólares. Se tivesse corrido mais 13 quilómetros, teria ganhado 25 mil dólares. Mais tarde, Joe De Sena dar-lhe-á um bónus de 10 mil dólares. "Foi mais difícil, mais escuro e mais épico, e de todas as formas que eu poderia esperar", diz-me Atkins mais tarde. A corrida terminou. Joe De Sena ainda se faz acompanhar do seu kettlebell. Por um lado, não está um milhão de dólares mais pobre do que ontem, embora parte dele desejasse estar. Talvez tenha feito mal os cálculos. Talvez tenha colocado a fasquia um pouco alta demais para Albon. Seja como for, ele tem planos mais ambiciosos. Quer transformar a corrida com obstáculos num desporto olímpico. "Desde o início que eu acho que para isto ter longevidade, terá de ser um desporto legítimo", confessa. Ele está a desenvolver esforços nesse sentido. "Precisamos dos governos de 42 países. Precisamos de espectadores. Porque, no final, as Olimpíadas preocupam-se com os espectadores. A realidade é que somos gigantescos, comparados com muitos desportos olímpicos." Ele olha para mim. "Gigantescos", repete. Quem é a pessoa em melhor forma do mundo? Provavelmente um corredor de obstáculos. Talvez seja Ryan Atkins. Talvez seja Jonathan Albon.

"Descobrir quão longe o corpo humano consegue ir pode nem sempre ser uma visão agradável", diz-me Albon depois da corrida. Desta vez, ele não foi até esse limite. Correu o equivalente a quase duas maratonas, subiu e desceu montanhas com um frio gélido, enquanto escalava, carregava objetos pesados e rastejava sob arame farpado. "Eu estava só a correr e a apreciar a vista" é o que tem para nos dizer.

Exclusivo The Times Magazine
Tradução: Erica Cunha e Alves

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