Francisco de Goya é um dos mais famosos pintores espanhóis, mas a sua vida e obra ainda hoje causam fascínio e estranheza. Nascido em 1746, os seus primeiros anos foram de grande sucesso – era altamente requisitado pela aristocracia espanhola, trabalhou na Real Fábrica de Tapeçarias e tornou-se pintor oficial das cortes de Carlos III e Carlos IV. Mas nos seus 82 anos de vida couberam dois homens e, mais importante ainda, dois pintores muito diferentes. Nos seus primeiros anos de trabalho, Goya era um homem do Iluminismo, admirador da razão, do progresso e da cultura francesa. Em 1792, porém, Goya contraiu uma doença misteriosa (provavelmente sífilis, meningite ou intoxicação por chumbo das tintas), que, como sequela, o deixou totalmente surdo. O isolamento auditivo foi, ao mesmo tempo, devastador e libertador. O pintor tornou-se amargo e cáustico, mais irónico e pessimista, mas também mais crítico da sociedade.
Privado do convívio e do ruído da corte, mergulhou num mundo interior mais sombrio e introspectivo. Afastou-se gradualmente da pintura por encomenda e começou a explorar a condição humana, o irracional e o grotesco. Dessa busca nasceram quatro séries de gravuras intituladas Los Caprichos, Los Desastres de la Guerra, La Tauromaquia e Los Disparates. Desenhos perturbadores e muito à frente do seu tempo que, pela primeira vez, estão compilados num único volume, a nova edição da Taschen, Goya – The Complete Prints, que reúne as 287 gravuras e litografias do pintor. Uma excelente oportunidade para descobrir e apreciar ao pormenor e sem pressa a sua produção gráfica mais importante e revolucionária.
Com as suas gravuras, Goya instaura um novo conceito de arte: o artista como testemunha do seu tempo. Nas suas séries, em particular em Los Desastres de la Guerra, as vicissitudes sociais atingem a categoria de protagonistas. As suas gravuras abordam temas como a religião, as mulheres, a guerra, as más condições de vida, a prostituição, os abusos dos ricos sobre os pobres e desvalidos, a violência, a maldade e a superstição. A sua modernidade mina os alicerces da tradição e lança as sementes das novas correntes artísticas, servindo de inspiração para movimentos como o Romantismo, o Impressionismo, o Expressionismo e o Surrealismo – especialmente com a série Los Disparates, onde se destacam visões oníricas, fantasmagóricas e grotescas.
Em Los Caprichos, série composta por 80 gravuras, criadas entre 1797 e 1799, Goya satiriza a sociedade espanhola de finais do século XVIII, em especial, a nobreza e o clero, criticando a superstição, a corrupção e a estupidez humana. Inclui a famosa imagem El sueño de la razón produce monstruos (“O sono da razão produz monstros”). Já em Los Desastres de la Guerra, com 82 gravuras feitas entre 1810 e 1820, o pintor denuncia os efeitos devastadores das Guerras Napoleónicas e as atrocidades cometidas contra civis. Devido ao seu conteúdo polémico, esta série só foi publicada 35 anos depois da sua morte, em 1863. Na sua terceira série, La Tauromaquia, com 33 gravuras datadas de 1815 e 1816, Goya mostra a história e a arte das touradas espanholas, não como espectáculo de bravura, mas como metáfora da violência e do destino. Um verdadeiro estudo sobre movimento e energia. E é também um tema que vendia muito bem – os artistas precisam de comer –, principalmente entre pessoas que não eram versadas em metáforas. Por último, a série Los Disparates, desenvolvida entre 1815 e 1823, está inacabada, contando apenas com 22 gravuras enigmáticas, surrealistas e cheias de simbolismo. Foi publicada postumamente, em 1864, com o título Los Proverbios.
Este volume da Taschen apresenta o conjunto completo da obra impressa de Goya, incluindo edições realizadas sob a sua supervisão direta, bem como provas raras de séries inéditas, oferecendo uma percepção invulgar sobre a sua incessante experimentação e o seu rigoroso controlo do processo de gravura. Com um comentário detalhado sobre cada imagem e ensaios assinados por José Manuel Matilla – chefe do Departamento de Desenho e Gravura do Museu do Prado – e Anna Reuter – investigadora independente, especializada na obra de Francisco de Goya –, este livro é o culminar de mais de dois séculos de investigação académica.
Goya não se limitou a representar o seu mundo. Dissecou-o, expondo as tensões eternas entre razão e loucura, justiça e crueldade, esperança e desespero. Registou um mundo em convulsão, onde o indivíduo era frequentemente esmagado pela violência, pela superstição ou pelo poder. As suas obras eram denúncias, meditações e avisos. Continuam atuais, mesmo passado 200 anos.
Goya – The Complete Prints é um livro de capa dura, com 600 páginas, e tem edição em português (coisa rara). Custa €100, está disponível no site da Taschen e é uma verdadeira edição de coleccionador imperdível para os amantes da arte pictórica.