Lisboa à mesa: quatro chefs que estão a mudar o sabor da cidade
Uma nova geração de chefs está a reconfigurar o panorama gastronómico da cidade, diluindo as fronteiras entre o restaurante e a casa, e propondo uma cozinha despretensiosa, mas cheia de intenção.
Em Lisboa, uma série de novos restaurantes está a redesenhar a paisagem gastronómica com traços de frescura, proximidade e criatividade. Longe dos formalismos da alta-cozinha e das modas passageiras, estes cozinheiros - jovens, inquietos e atentos ao quotidiano - propõem uma abordagem mais livre. na qual o sabor se a quotidiano sobrepõe ao aparato e o gesto se aproxima do afeto. Nos seus restaurantes, há espaço para a improvisação, para o produto local e para a memória familiar, sem que isso implique uma cedência à banalidade.
São quatro nomes que, cada um à sua maneira, estão a transformar a maneira como se come fora de casa em Lisboa. Com menus enxutos, ambientes informais e um discurso direto, têm em comum o desejo de romper com a rigidez clássica e de devolver à cozinha um lugar de partilha - mais próximo da mesa de casa do que do pedestal do chef. Neles, a técnica serve o prazer, e a sofisticação nasce do despojamento.
Uma das vozes mais marcantes desta nova cena é a de Leonor Godinho, 34 anos, que trocou a psicologia clínica pelos fogões depois de uma experiência reveladora no MasterChef Portugal, em 2014. Desde então, não mais saiu da cozinha profissional. "Acho que o que me levou a ser cozinheira foi o facto de adorar comer", resume, com humor. Mas o momento decisivo veio em 2019, quando assumiu pela primeira vez a sua própria cozinha. A partir daí, tem vindo a construir uma abordagem culinária muito pessoal: sem os formalismos do fine dining, mas com exigência técnica e intenção. "Gosto da ideia de fazer coisas complexas que, aos olhos de quem come, sejam simples e boas - como uma boa Sandes.
Leonor é hoje responsável por dois espaços em Lisboa que, embora distintos, partilham uma mesma filosofia: a valorização do sabor, da autenticidade e da proximidade. A Bibs, no bairro de Santos, é o mais recente - e o mais pessoal. Ocupa o lugar de um antigo café de bairro, o Apolo XI, no qual os bolos de arroz, os pães de deus e os sumos em fila faziam parte do quotidiano da vizinhança. Quando os antigos proprietários decidiram reformar-se, Leonor, que conhecia bem o espaço e família, viu ali a oportunidade ideal para resgatar a sandes de pastrami que tanto sucesso fizera na Musa da Bica, onde anteriormente liderou a cozinha. A transição foi rápida, sem sobressaltos - e sem grandes transformações estéticas, mantendo-se a aura de café tradicional, agora com um toque de autoria. Desde a abertura, em abril, a casa tem dado que falar, tanto entre estrangeiros residentes como entre clientes fiéis que acompanham a sua carreira.
Já 'A Vida de Tasca, em Alvalade, presta homenagem ao património tasqueiro português, num registo que respeita a tradição, sem deixar de a reinventar. Para ela, "descomplicar" a gastronomia é, antes de mais, democratizar o acesso à cozinha de autor - uma ideia que se concretiza tanto no prato como na sala. "Estou muito mais perto dos clientes do que se fosse apenas chef e estivesse sempre enfiada na cozinha", afirma. Essa proximidade é parte do gesto culinário, parte do gesto humano.
Também vinda de um percurso marcado pela intuição e pela entrega total ao ofício, Lívia Orofino, 28 anos, é atualmente chef residente do Canalha, em Lisboa, onde assume o dia a dia da cozinha como sous-chef ao lado de João Rodrigues (head chef, com quem já trabalhara no Feitoria). Brasileira com razes italianas, Lívia vive em Portugal há cinco anos e nunca se imaginou a fazer outra coisa que não cozinhar. "A verdade é que cu nunca pensei fazer outra coisa", diz, com naturalidade. Cresceu a ver programas de culinária, apaixonou-se pelos livros de cozinha e começou, desde cedo, a trabalhar em restaurantes em que o respeito pelo produto era a base de tudo. "Sempre busquei cozinhas nas quais o produto fosse o principal - e no Canalha isso vai ainda mais longe: valoriza-se também o fornecedor, quem está por trás de cada ingrediente."
A sua linguagem culinária é direta, com forte influência italiana - herança de avós e memórias familiares -, e marcada por uma abordagem em que o produto é o protagonista. "Identifico-me com uma cozinha simples e boa. Não precisa de muita intervenção." Para Lívia, descomplicar não é sinónimo de banalizar, mas sim de aproximar: do ingrediente, do cozinheiro, do cliente. "Hoje, quem vai a um restaurante quer ver quem está a cozinhar, quer estar próximo. É como entrar numa sala de estar: um ambiente descontraído, com boa comida e sem rigidez." Reflete ainda sobre a transformação que Lisboa vive: mais jovens chefs, mais mulheres, mais espaços informais - e um público que acompanha esse movimento com petite renovado.
É também o caso de Tomás Blades, lisboeta que começou a cozinhar quase por acaso. As memórias de infância incluem férias passadas entre tachos e panelas ao lado de Vasco Gallego, do icónico XL, um dos melhores amigos do pai. "Dava por mim no meio da cozinha a ver as coisas, acho que começou um bocadinho por aí", conta. Estudou Educação Física, mas a vocação levou-o a trocar os ginásios pelas cozinhas. Seguiu para a Suíça, onde começou o percurso em hotelaria num grande resort de esqui, e por lá se manteve durante três anos e meio. Já de regresso a Lisboa, passou pelo Memmo, The Oitavos, La Boulangerie e trabalhou no grupo Amorim Luxury, no qual participou na abertura e gerência do JNcQUOI Deli, tendo sido depois convidado para ser responsável pela Ladurée. Não demorou para que Tomás ambicionas- se outros voos. Hoje, é o rosto por trás do DaNoi e do recém-aberto Skizzo, dois espaços que respiram uma cozinha urbana, global e sem cerimónias - e onde o cuidado com o acolhimento é tão importante quanto o que chega ao prato.
"O restaurante é a nossa casa", diz, e leva isso a sério: copos herdados dos jantares entre amigos, lugares adaptados em tempo real, pratos que nascem de viagens e experiências vividas fora. A informalidade é assumida como marca, mas sem perder rigor. "A mim chateia-me muito quando ligo para um restaurante e me dizem que está cheio e depois há sempre espaço. Quando damos um jantar para os nossos amigos, às vezes as pessoas comem em pratos diferentes, e uns sentam-se no sofá. Tentamos olhar para os restaurantes um pouco dessa maneira e tentar receber as pessoas da melhor forma possível. Claro que é um restaurante, mas tentamos sempre encontrar uma solução. Espera um bocadinho, bebe um copo... vamos dar-te mesa." Entre partilhas, pratos com preços variados e um ambiente descontraído, Tomás acredita que "jantar fora está cada vez mais democrático" - e Lisboa, por ser mais aberta à experimentação e menos esmagada pelos custos do setor ("É muito difícil abrir um restaurante em cidades como Paris, Londres, ou Nova lorque", diz), é hoje fértil em novos projetos, sobretudo de jovens cozinheiros. "Se quem vive cá e quem nos visita sentir que a gastronomia é boa, melhor será para o turismo e para o futuro do país.
Com 40 anos, João Magalhães é uma das figuras centrais da nova cena gastronómica lisboeta, responsável por lugares como o Tricky' e o Bar Alimentar. Originalmente estudante de Direito, encontrou na cozinha uma forma de equilíbrio e prazer num percurso inicialmente incerto. "Produzir algo que tem um início, meio e fim, num curto espaço de tempo, trazia-me paz", recorda. Após uma rápida decisão de ingressar na escola de hotelaria, João mergulhou de corpo e alma na gastronomia, numa trajetória que ganhou contornos claros após viagens a Itália, particularmente a Milão, onde bebeu inspiração para implementar as suas ideias em Lisboa. Para João, "descomplicar" a gastronomia não significa reduzir a qualidade, mas sim o resultado de muito trabalho, rigor e formação. "Mesmo esta nova geração já passou por muito, com mais de dez anos de experiência a níveis exigentes." Além da cozinha, esta atitude estende-se à experiência completa do cliente: do atendimento ao ambiente, da música à acessibilidade dos preços. O Tricky's foi pensado como um projeto de rutura, no qual comida de qualidade convive com música alta, convívio e uma atmosfera que desafia a rigidez tradicional dos restaurantes. Começou por ser "um restaurante que dava grande enfoque à comida, mas que também tinha música alta, bebia-se uns copos e se calhar acabava e dançava-se. Uma coisa que não estava associada à qualidade." Hoje, as pessoas procuram um lifestyle em que comida e diversão se misturam - o que há alguns anos parecia estranho agora é a norma.
Como parte desse espírito, João está a preparar a abertura de um novo bar de vinhos no Príncipe Real, para setembro, com cozinha e focado em produtos selecionados como carnes curadas e pão artesanal, continuando a missão de aproximar o público de uma gastronomia honesta e despretensiosa. Para ele, a nova vaga de chefs que marca a cidade partilha uma vontade comum: criar algo "contracorrente", rompendo com os modelos estabelecidos pelo fine dining e reinventando a cultura gastronómica portuguesa. "Vimos os chefs que fizeram esse caminho no fine dining, aprendemos com eles, mas quisemos fazer outra coisa." E fizeram. Esta nova vaga de chefs está a reconfigurar o panorama gastronómico da capital, afastando-se do formalismo e da rigidez que durante anos marcaram o setor. Cozinham com técnica apurada, mas preferem a descontração à solenidade. Valorizam o produto, o fornecedor, e procuram uma relação mais direta com o cliente. Nos seus restaurantes, a comida deixa de ser um fim em si mesma e passa a integrar uma experiência mais ampla - feita de música, partilha, informalidade e proximidade. Esta mudança, que não é apenas estética, reflete uma transformação de fundo: a gastronomia em Lisboa está a tornar-se mais acessível, mais plural e, acima de tudo, mais próxima de quem a vive.
Créditos:
Realização de Maria Nobre
Maquilhagem e cabelos de Rita Tavares
Assistente de styling: Diogo Franco
Assistente de fotografia: Christian Caklamanis.
Mais de 20 presentes originais (mesmo para quem tem tudo)
Até à última hora, é possível escolher com distinção. Surpreenda com um presente à altura dos melhores.
Cinco gadgets incríveis que vão brilhar no Natal
Uma faca secular digna de chef, uma máquina de escrever para novos autores e um e-reader finalmente a cores.
Lisboa como morada da moda. Chegou o projeto arquitectónico de Karl Lagerfeld
Com apenas 10 apartamentos previstos e uma localização estratégica junto à Avenida da Liberdade, o projeto destaca-se como um dos empreendimentos mais exclusivos da década.
Como é que o homem do imobiliário e ícone do turismo português olha para o impacto da pandemia no setor do turismo? Com hotéis que passam a ter apartamentos, menos alojamento local e muito foco no turismo de qualidade. Recordamos esta entrevista ao empresário, que morreu hoje, aos 90 anos.
A mais recente loucura de fazer dinheiro está em negociar criptomoedas. Quão difícil pode ser? Matt Rudd entra a bordo da montanha-russa.
Entrevistámos vários chefs que se deparam, mais uma vez, com as portas dos seus estabelecimentos fechados. Pedro Almeida, do Midori, no Penha Longa Resort, não baixa os braços e fala com otimismo dos desafios do momento.
Conversámos com Gregory Bernard, o homem que viu na Costa da Caparica um hotspot prestes a tornar-se no escape mais cool da Grande Lisboa.