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Isto Lembra-me Uma História: De massacre em massacre até à escola de Nashville

São notícias demasiado recorrentes, que normalmente começam com “um homem armado entrou numa escola na cidade de [inserir nome] no estado do [inserir nome], nos Estados Unidos”. Segue-se o número de mortes, com a especificação de quantas crianças se encontram entre estas.

Foto: Getty Images
03 de abril de 2023 | Diogo Xavier
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Há uma passagem de Bowling for Columbine que me causou particular impressão - e se há filme que causa impressão é esta espécie de manifesto anti-armas de fogo realizado pelo cineasta-ativista-populista Michael Moore em 2002. Refiro-me à passagem em que Moore visita o ator veterano Charlton Heston (1923-2008) na mansão deste para o confrontar com questões relacionadas com a NRA [Associação Nacional de Rifles].

Na altura, quando vi o filme pela primeira vez, pareceu-me tudo muito exagerado, muito demagógico, além de injusto e até cruel para a figura de Heston, uma pessoa afável que recebeu em casa, com a maior educação e simpatia, um realizador reconhecidamente provocador, com a sua equipa de filmagem. É um Charlton Heston já fisicamente debilitado, à beira dos 80 anos (e não a estampa de homem vigoroso com que imortalizou a figura de Ben Hur no clássico épico com o mesmo nome, de 1959), aquele que surge à porta de casa - sem surpresa, uma mansão hollywoodesca -, estendendo a mão a Moore depois de o deixar entrar: fez questão de ser ele próprio a vir à rua receber as visitas. Ver como foi, a partir de certo ponto, apertado por Michael Moore ao longo da conversa - na sua própria casa, diante de câmaras, visivelmente transtornado -, depois de o realizador o ter enganado dizendo que era, ele próprio (Moore), membro vitalício da NRA, causava-me uma espécie de asco moral. Como é que se pode fazer isto a alguém como Charlton Heston? Um homem de 80 anos? Na casa deste?

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A propósito do recente tiroteio massivo ocorrido numa escola cristã em Nashville, no estado americano do Tennessee, que provocou seis mortos - três adultos e três crianças -, lembrei-me desta história e fui rever essa tal passagem de Bowling for Columbine. Após alguns minutos de uma curta conversa, sentindo-se afrontado pelas perguntas diretas de Moore, o veterano Heston diz simplesmente que "vamos discordar nesse ponto" e levanta-se para se ir embora. Acaba por sair mesmo, depois de deixar sozinho e incrédulo o seu interlocutor. O ponto em que discordavam não era apenas um, mas havia um que era mais divisor do que os outros: aquele em que o realizador sugeria que o ator devia pedidos de desculpa às populações de sítios como Columbine, no Colorado, onde ocorrera um massacre no liceu local. Dois jovens alunos, armados com espingardas automáticas, mataram ali 12 alunos e um professor antes de se suicidarem, a 20 de abril de 1999. O pedido de desculpas sugerido por Moore a Heston tinha a ver com o facto de o ator, à época presidente da NRA, ter feito vários comícios pró-armas em localidades - ou em cidades próximas dessas localidades - onde haviam ocorrido tiroteios massivos pouco tempo antes. No fundo, Moore pedia a Heston o reconhecimento de que fora insensível ao fazer esses comícios, naqueles momentos.

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Charlton Heston, que morreu em 2008, não é o tema aqui. Nem o é o massacre de Columbine. Ou, sequer, o massacre de Nashville. Heston só é chamado à história porque foi presidente da NRA durante cinco mandatos. Para quem não sabe - se é que alguém não sabe -, NRA é a sigla de National Rifle Association of America, uma associação sem fins lucrativos cujas receitas anuais ascendem aos 500 milhões de dólares, o que não é manifestamente mau para quem não quer ter lucros. A NRA é possivelmente o principal lóbi, tanto no Congresso como no Senado estado-unidenses, a favor das armas e do acesso a estas. É graças à NRA que é mais difícil adquirir medicação do que uma arma semi-automática nos Estados Unidos da América. Estamos a falar do país onde uma pessoa com menos de 21 anos não pode comprar uma garrafa de cerveja Budweiser com álcool, mas um adolescente de 16 anos pode entrar numa loja e comprar uma Colt AR-15, que é uma espingarda de assalto.

A cadeia de lojas Walmart começou a mudar, por iniciativa própria, as normas de acesso a este tipo de armas em 2018; no entanto, não há qualquer lei que obrigue as lojas a um política de venda responsável deste tipo de armamento. Essa lei chegou a vigorar, entre 1994 e 2004. Chamava-se Federal Assault Weapons Ban, foi assinada por Bill Clinton e revogada ao fim de 10 anos, como previsto na sua formulação inicial, era George W. Bush o presidente americano. Estima-se que circulem, hoje em dia, entre 10 e 12 milhões de AR-15 - e importa lembrar que existem outros tantos milhões de semi-automáticas de assalto no mercado semelhantes ao célebre e amado modelo criado pela Colt.

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O recente tiroteio de Nashville ocorreu a 27 de março. A 29 de março, ia o ano com 88 dias, tinham acontecido 131 tiroteios massivos nos Estados Unidos. As histórias repetem-se, assim como o tipo de locais e o tipo de vítimas. As escolas são alvos preferenciais dos homicidas e as crianças e os adolescentes que as frequentam são todos potenciais vítimas - "sitting ducks", como os americanos gostam de dizer. Chegou-se ao ponto de, em 2023, a bala ser a principal causa de morte das crianças norte-americanas. Sim, os tiroteios tiram mais vidas do que qualquer doença ou acidente, mesmo incluindo os acidentes rodoviários. Os números são assustadores. Em 2020, 2021 e 2022, registaram-se sempre para cima de 600 tiroteios massivos. Desde que os republicanos deixaram expirar, em 2004, o Federal Assault Weapons Ban, os tiroteios aumentaram 243%. 

Enquanto isso, e à medida que os números de cadáveres se acumulam nas escolas e nas memórias americanas, a NRA continua a usar como defesa a Segunda Emenda da Constituição - aquela que consagra o direito à auto-defesa, mesmo recorrendo a armas de fogo - e como argumento o tão popular quanto estúpido "armas não matam pessoas; pessoas matam pessoas". Tanto para um caso como para outro, o ator e argumentista escocês Francis Maxwell tem resposta e fez questão de a publicar no Twitter logo a seguir ao recente massacre de Nashville: "Não sei quantos de vocês se lembram, mas a América tentou banir as armas e resultou (...), os tiroteios em massa diminuiram 43% [durante o período entre 1994 e 2004]". Ainda no Twitter, o mesmo Maxwell relembrou o que mudou no Reino Unido depois do massacre de Dunblane, na Escócia, em 1996, quando um homem armado entrou num ginásio de uma escola primária e matou 16 crianças e uma professora: "Há 26 anos, um homem armado foi autor de um tiroteio na Escócia. Foi devastador. Mas sabem o que aconteceu a seguir? O governo do Reino Unido tomou ações drásticas no que respeita a leis de controlo de armas. Adivinhem lá quantos mais tiroteios ocorreram desde então. ZERO. Nem um."

A NRA e a generalidade dos americanos que têm pela Segunda Emenda uma espécie de devoção religiosa deviam lembrar-se desta história e de todas estas histórias. Em 2022, Steve Kerr, treinador da equipa da NBA Golden State Warriors, disse, numa conferência de imprensa antes de um jogo e após o massacre numa escola de Uvalde, no Texas: "Nos últimos dez dias, tivemos idosos negros assassinados num supermercado em Búfalo, tivemos religiosos asiátios assassinados no Sul da Califórnia, agora temos crianças assassinadas na escola." Kerr falava visivelmente emocionado e não se referiu sequer à partida de basquetebol, o motivo que o levava ali. "Quando é que vamos fazer alguma coisa? Estou cansado. Estou farto de chegar aqui e mandar condolências às famílias devastadas que estão aí fora. Estou farto de minutos de silêncio. Já chega." Pelos vistos, ainda não chegou.

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