Conversas

O guru da fermentação

Apontado como um dos maiores responsáveis pelo revivalismo da arte milenar de trabalhar culturas vivas, cujos benefícios comprovados para a saúde são múltiplos, Sandor Ellix Katz escreveu o que é hoje considerado a Bíblia da Fermentação. Esteve em Portugal recentemente e partilhou connosco alguns dos seus conhecimentos.

04 de novembro de 2019 | Carolina Silva

Sandor Katz recebeu-me entusiasticamente, numa das salas do Instituto Macrobiótico Português. Era a última pessoa a entrevistá-lo antes do seu workshop que transbordou de pessoas atentas à sua arte. A da fermentação, e a de comunicá-la. Este caricato americano, com um farto bigode e uma camisa colorida revela o à vontade de quem não se leva demasiado a sério. Olha para o seu livro e desbloqueia a conversa perguntando-me o que quer o título dizer em português. "Os Segredos da Fermentação" um êxito mundial é muito mais do que uma necessária enciclopédia sobre a fermentação, é o relato de uma história de vida e de uma paixão por uma arte ancestral. "Chama-se Wild Fermentation em inglês" continua o seu autor, "já foi traduzido de tantas maneiras diferentes em diversas línguas, por isso não consigo acompanhar. É Pura Fermentacion em espanhol e Fermentation Naturel em francês, não deixa de ser curioso. Mas gosto da ideia dos segredos em português." Ri-se com uma gargalhada contagiante e aproveito para lhe pedir que partilhe alguns dos seus.

"Os Segredos da Fermentação"

Como é que começou este interesse pela fermentação?

Este meu interesse começou de uma maneira muito simples: quando era criança, adorava pickles. Sentia-me atraído pelo sabor deste tipo de pickles da Europa ocidental, os meus avós emigraram para Nova Iorque, da Polónia e da Bielorrússia, e sempre tivemos estes alimentos em casa. No inicio dos meus 20, quando comecei a seguir uma dieta macrobiótica, falava-se muito sobre os benefícios digestivos dos pickles e de outros alimentos fermentados, e comecei a aperceber-me do borbulhar de saliva que provocavam nas minhas papilas gustativas. Associei-os aos benefícios digestivos e a uma saúde melhorada. Em 1993 mudei-me de Nova Iorque, onde nasci e cresci, para uma comunidade no Tenessee rural, e envolvi-me em jardinagem e em agricultura, mas especificamente na plantação de vegetais, e isto era tudo uma novidade. Nunca me tinha apercebido da realidade prática da agricultura, todas as couves ficam prontas ao mesmo tempo, assim como os rábanos… e foi aí que pensei que devia aprender a fazer sauerkraut (vegetais lacto-fermentados), como maneira de preservar os vegetais. Procurei em livros de cozinha e aprendi a fazê-lo de uma maneira supreendemente fácil. Por isso comecei a experimentar com outros vegetais, aprendi a fazer iogurte, comecei a brincar com tentativas de fazer vinho de diferentes frutas, fiz bão… fiquei obcecado com a fermentação.      

Como é que esta paixão se transformou de uma experiência na sua cozinha com amigos, para o reconhecimento mundial?

Quando esta obsessão já estava sedimentada continuei a experimentar diferentes formas de fermentação. Li muito, experimentei estilos japoneses, aprendi sobre diferentes tradições… e em 1998 fui convidado para dar um workshop sobre fermentação num evento de partilha de conhecimentos alimentares. Foi tão divertido fazê-lo. Mas também me apercebi dos receios da maioria das pessoas sobre esta técnica. Há muita projecção dos medos sobre as bactérias. Fazer com que se sentissem mais confortáveis foi um desafio interessante. É uma estratégia para haver segurança alimentar na verdade. E em 2001, fui para o Maine (EUA), e não pude estar presente neste evento anual, então decidi que iria escrever as minhas receitas para enviar-hes. Foi este o início do meu livro. Com 50 cópias.

Mas o seu livro é na verdade, muito mais do que um livro de receitas…

Sim foi instintivo. À medida que ia escrevendo as receitas ia acrescentando um pouco de informação, aqui e ali. Orientações práticas que fossem úteis para as pessoas. Fiz mais pesquisa, procurei editoras, encontrei uma editora interessada e publiquei o meu livro. Mas daí para a frente foi um processo muito lento, era muito obscuro, organizei digressões literárias em mercados agrícolas e em livrarias mais naturistas. Depois disso comecei a receber telefonemas e e-mails com convites para apresentar o livro. Inicialmente era nos Estados Unidos, fui para o Canadá, para Itália, e foi progredindo lentamente. Quanto mais atenção ia conseguindo nos media, mais convites internacionais recebia.

Esta aventura começou há sensivelmente 20 anos. Tem notado diferenças na aceitação desta arte de trabalhar culturas vivas, numa sociedade cada vez mais germofóbica?

Desde o inicio que houve muitas pessoas interessadas, por uma quantidade de razões diferentes: conheci pessoas que, como eu, estavam interessadas no aspecto prático da preservação dos alimentos, outras que estavam interessadas nos benefícios para a saúde, alguns chefs que estavam interessados nos sabores fortes e únicos da fermentação. E depois há o aspecto cultural, muitas pessoas mencionavam as recordações destes sabores que nunca haviam conseguido reproduzir, e queriam conectar-se a alguma cultura através destes sabores. Mas é-me muito claro que, desde o dia em que comecei, até hoje, o interesse tem crescido bastante. E acho que a razão principal pela qual este interesse aumentou, são as notícias sobre o micorbioma. Portanto, todos os que cresceram no século XX passaram a vida a ouvir que as bactérias eram más e que os químicos eram essenciais para ajudar a matá-las, e as recentes investigações sobre o microbioma fizeram-nos perceber que afinal não são todas más, e que na realidade precisamos delas. Precisamos desta biodiversidade dentro de nós para sermos saudáveis, mas temos uma exposição constante aos químicos que diminui esta biodiversidade e as comidas fermentadas são uma maneira de ingerir estas bactérias probióticas e de melhorar o sistema imunitário. Novas pesquisas revelam que o nosso cérebro está conectado ao intestino e às bactérias, o que nos leva a concluir que a saúde mental pode estar ligada às bactérias dentro de nós. É o factor mais significativo para o aumento do interesse. Há outros motivos. Para a geração da minha mãe e da minha avó, os supermercados representaram libertação, mas para a nossa geração, o sentido crítico é maior. A consciencialização sobre as doenças como a diabetes e o cancro estarem ligadas à alimentação, ou sobre os danos ambientais que a industria alimentar produz levou as pessoas a fazerem mais perguntas. O que estou a comer? Como é produzido? Quando se começa a colocar questões, a fermentação faz parte das respostas.

Na realidade são muitos os produtos de consumo diário que são fermentados, correcto?

Sim, repare, o café é fermentado, e faz parte de todas as gerações. O queijo, o pão, carnes curadas, vinagre, cerveja, vinho, chocolate… os produtos da fermentação têm uma popularidade duradoura, mas nunca ninguém pensou muito sobre o processo de fabrico.

Não podemos referir-nos à fermentação como uma hot new trend, está presente nas nossas vidas desde sempre, mas acredita que está ligada a uma maior longevidade e a uma vida mais saudável?

Ah, bem eu adoraria poder dizer-lhe um segredo para uma vida mais longa e saudável mas acho que a vida é complicada. A qualidade da comida é factor muito importante no nosso bem estar, sem duvida, e há diversos componentes importantes, sendo que um deles são os probióticos. Não acho que seja o segredo para uma vida mais longa e saudável, mas acredito que pode equilibrar muitas coisas. Tenho tido essa experiência dos testemunhos de muita gente. Os benefícios são muitos e não há riscos.

Pode ser uma das respostas nutricionais em países com menos recursos?

Sim, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura publicou uma série de documentos nos anos 70 e 80 sobre fermentação, onde recomendavam esta prática nos países com menos recursos. Se houver mais fermentação dos alimentos disponíveis, retira-se mais nutrientes deles. Os benefícios são imensos. Um bom exemplo disso é a mandioca que tem compostos tóxicos, mas através da fermentação quebram-se os compostos tóxicos possibilitando a sua ingestão. E é um alimento tão importante em tantas culturas.

Viveu numa comunidade pequena, com jardins e todos os recursos disponíveis. É realístico pensar que se pode fazer isto nas sociedades urbanas?

Claro que sim. Qualquer pessoa pode ir a um mercado biológico comprar couves, cenouras e cebolas. Só precisam de um jarro. O processo de fermentação é longo mas a preparação demora uns 15 minutos. Já conheci estudantes que viviam em dormitórios que fermentavam alimentos, por isso, sim é possível fazê-lo em qualquer lado.

Ainda se surpeende com espanto das pessoas em relação à fermentação?

Nunca penso que sou dos poucos que o faz porque conheço sempre pessoas que praticam fermentação. Há três anos dei um workshop na Polónia e conheci uma portuguesa que me abordou e confessou que não conhecia mais ninguém que fermentasse alimentos. Tenho a certeza de que vai aparecer hoje. Reconheço as barreiras, os receios. Mas sabia que não há casos registados de intoxicações alimentares provocadas pelos vegetais fermentados? Pode dizer-se que é do mais seguro que há.

Enquanto alquimista, que experimenta de tudo um pouco, qual foi a coisa mais estranha que tentou fermentar?

Nada é assim tão estranho à fermentação. Mas posso dizer que a courgete não tem muita piada fermentada. Os vegetais muito aguados, regra geral, são pouco interessantes porque ficam muito moles. A couve kale fica com um sabor demasiado intenso, mas os gostos também variam.

A sua alimentação mudou quando descobriu que era seropositivo. Notou que a sua saúde beneficiava destes alimentos?

Não posso dizer isso com toda a certeza porque já comia muitos pickes antes, mas posso dizer-lhe que noto que, quando não como comida fermentada, nas viagens por exemplo, a minha digestão abranda. Tomo a minha medicação, que não haja enganos, mas muitas das pessoas que tomam esta medicação têm problemas digestivos que nunca experienciei. Fico feliz por dizer que a minha saúde está relativamente bem e estável. Há muitas provas cientificas de que os probióticos que ingerimos estimulam o sistema imunitário. Ganhamos mais resistência a gripes e constipações, mas é difícil dizer se é realmente por causa disso. Tento não exagerar no caso da fermentação e não vou por aí.

Sandor Katz
Sandor Katz

Há um efeito terapêutico em meter as mãos na terra?

Com certeza! O meu jardim é o meu lugar de cura. Sinto-me calmo, conectado com a terra, com as minhocas, com as plantas. Na minha vida, tem sido o melhor sítio para recuperar energias e para ligar-me à Terra a coisas maiores do que eu.

O último capítulo do seu livro fala de "morte e decomposição". Pode explicar-nos este final?

Claro. Falando de uma maneira generalizada, a fermentação é a acção dos microorganismos, e estes são a força na Terra, que decompõe todos os materiais de plantas e animais mortos, devolvendo-os ao solo e de volta aos elementos para originarem mais vida. Acho que quando falamos do ciclo da vida e da morte, devemos incluir a fermentação também. É o que liga a morte à vida renovada e se não tivéssemos esta força vital, acumularíamos tudo. As baterias decompõem tudo e é isso que nos permite continuar.

Considera-se um activista alimentar. Em que sentido?

Quando digo que a fermentação pode ser uma forma de activismo refiro-me ao que falamos ao pouco, sobre a destruição ambiental da indústria alimentar. Reclamar os nossos alimentos deve estar na agenda política, e aprender uma tarefa como a fermentação ou cultivar os nossos vegetais pode ser uma maneira de nos dar mais independência.

 

 

Saiba mais Sander Katz, fermentação, regimes alimentares, Bíblia da Fermentação
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