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"Na incerteza do futuro, o álcool pode tornar-se um medicamento"

Se está a beber diariamente enquanto espera que a pandemia do novo coronavírus passe, fique alerta. Saiba como evitar que o momento de descontração se transforme num vício.

Foto: Christian Buehner | Unsplash
09 de abril de 2020 | Aline Fernandez

A mudança de rotina de trabalho e a falta de horários fixos podem ser consideradas pontapés para um maior consumo de álcool. Junte a isso o stress e a ansiedade causados pela pandemia atual e o copo ao final do dia pode tornar-se um escape para bloquear esses sentimentos, tanto cognitiva quanto quimicamente. 

"De facto, esta mudança de rotina que fomos obrigados a pôr em prática é um potenciador para o maior consumo de álcool. Por várias razões, uma delas é porque não tivemos tempo de nos adaptar a esta mudança, foi uma coisa quase do dia para a noite", começa por explicar João Marques, Presidente da Sociedade Portuguesa de Alcoologia, diretor clínico da Clínica do Outeiro, em Gondomar, e médico psiquiatra na Casa de Saúde Santa Catarina, no Porto.

E toda esta adaptação exige de nós respostas que ainda não conhecemos, o que traz reações humanas normais mais intensas, como a ansiedade, o receio e a dúvida do futuro. "Faz com que nos sintamos mais angustiados e o álcool surge como medicamento", refere João, a explicar que quando recorremos às bebidas alcoólicas nessas alturas aliviamos exatamente todas esses sintomas e "damo-nos uma falsa sensação de bem-estar". 

E ainda existe outro fator preocupante: o isolamento é um dos estágios definidos do alcoolismo, portanto pode favorecer o aumento do consumo de bebidas alcoólicas. "Mas nem todos os isolamentos" se aplicam, explica João Marques, e detalha: "está muito dependente da nossa idade e da nossa etapa de vida." Para os mais jovens, em geral, tem sido benéfica [a quarentena] em relação à redução do consumo de álcool, já que o seu uso se relaciona a festas e convívios à noite com amigos, fora de casa – o que tem não tem acontecido nas últimas semanas. Porém o cenário é muito diferente de outras faixas etárias, que já se habituaram a levar o álcool para dentro de casa e a consumi-lo esporadicamente. "Os mais velhos estão mais isolados, perderam a sua rotina e têm aumentado o consumo", assegura o médico psiquiatra.

A lógica do processo de má adaptação (bebo, alivio o meu mal-estar, logo vou continuar a beber), pode evoluir para um consumo patológico. "O álcool é uma substância que quimicamente é muito semelhante aos ansiolíticos, vulgo o Xanax ou o Valium, que aliviam o mal-estar e a ansiedade", continua o psiquiatra. Numa altura destas, em que andamos ansiosos, angustiados "se eu beber um copo de vinho ou um copo de outra bebida alcoólica o efeito é como um Xanax, o que não é um bom mecanismo, porque passa o efeito e vou ter a tendência de ir buscar mais um bocadinho."

Mário Marques, psicólogo e presidente dos Alcoólicos Anónimos há 18 anos lembra que "se costumava dizer que o álcool era o maior antidepressivo que se vendia em Portugal. Sobretudo aos homens que não iam ao psicólogo e ao psiquiatra e procuravam no álcool uma espécie de antidepressivo para curar as suas angústias.". Mas os tempos mudaram e não significa que esteja a tornar-se alcoólico só porque está a beber um copo para aliviar a tensão. "Eu conheço muitos alcoólicos que bebem para aliviar uma tensão emocional, como conheço muitos alcoólicos que bebem porque gostam." A primeira razão pela qual um alcoólico bebe é por isso mesmo, porque gosta de beber e gosta do efeito que o álcool lhe transmite, explica-nos o psicólogo, reforçando que o alcoolismo é uma doença crónica e que não tem cura. E outro aspeto muito importante é que é uma doença progressiva, portanto a pessoa vai bebendo e instala-se ao longo do tempo. 

O truque para escapar desta roda do hamster será aceitar que tem de organizar a sua vida de uma forma semelhante ao que tinha, a começar pela hora que acorda e se vai deitar. Tem de implementar uma nova rotina. Mantenha-se ocupado em várias vertentes. "Uma prática, cognitiva, ou seja, de trabalho mais elaborado e outra física", afirma João Marques. A atividade física regular ajuda a libertar algumas substâncias endógenas que têm o mesmo efeito que procura no álcool. "As endorfinas aliviam a ansiedade e dão-me prazer, se eu implementar nesta minha rotina um exercício por dia ajuda também a andar mais tranquilo e não tão stressado", refere o médico psiquiatra.

E se não consegue controlar-se tão bem, corte o mal pela raiz e evite ao máximo trazer álcool para casa. Quando for beber, não tenha garrafas por perto, porque irá terminá-las mais facilmente. Outro bom truque é perguntar-se: 'Eu estaria neste momento a beber um copo se não estivesse isolado?’ Compare as suas atitudes num dia a dia dito normal e deixe a resposta guiar as suas ações. Procure algo que possa preenchê-lo durante estes dias, como cozinhar, aprender um novo idioma, ler um livro, o que puder animá-lo nestes tempos difíceis que passarão.

Se não faz parte dos AA, está preocupado com o consumo de álcool durante este período e gostaria de falar com um profissional, não precisa de sair de casa. Os Alcoólicos Anónimos têm uma linha de apoio disponível através do número 21 716 29 69, todos os dias, das 10h00 às 22h00. Para mais informações e ajuda, visite www.aaportugal.org ou escreva para ajuda@aaportugal.org. Também pode contactar a Unidade de Alcoologia do seu distrito.

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