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“Estou com a mesma roupa há três dias.” Teletrabalho na era do coronavírus.

Acabou a divisão entre vida pessoal e profissional. Os trabalhadores estão cansados, stressados e com vontade de regressar ao escritório.

Foto: Unsplash
28 de abril de 2020 | Bloomberg

Um executivo do JPMorgan Chase recebe mensagens sem pedido de desculpas de colegas à noite e nos fins de semana, incluindo uma notavelmente exigente no domingo de Páscoa. Um web designer cujo quarto serve de escritório precisa de acionar um alarme para se lembrar de almoçar durante a jornada de trabalho sem parar. Na Intel, uma vice-presidente com quatro filhos fica conectada 13 horas por dia enquanto tenta conciliar a tarefa de cuidar dos miúdos e trabalhar.

Após seis semanas de experiências nacionais de trabalho em casa sem um fim à vista, quaisquer que fossem as fronteiras que restavam entre trabalho e vida pessoal desapareceram quase inteiramente.

Com muitas pessoas morar a poucos passos dos escritórios, a cultura de trabalhar a qualquer hora dos Estados Unidos alcançou novos patamares. A jornada de trabalho das 9h às 17h, ou qualquer coisa parecida, parece uma relíquia de outra era. Formalidades como se desculpar por ligar ou enviar e-mails em horários inadequados são coisa do passado. Funcionários esgotados sentem que têm menos tempo livre do que quando perdiam horas nos transportes para ir chegar ao emprego.

"Para ser bem sincera, estou a vestir exatamente a mesma roupa desde segunda-feira", disse Rachel Mushahwar, vice-presidente e gerente-geral de vendas e marketing para os EUA da Intel, numa entrevista que aconteceu numa quinta. "Acho que tomei banho três vezes."

Alguns especialistas esperavam que a grande migração para o trabalho em casa durante a pandemia levaria a uma nova era de acordos de trabalho flexível. Em 2017, apenas 3% de profissionais nos EUA disseram que trabalhavam "principalmente" em casa num estudo do censo. Mas agora milhões se abrigaram em casa no que se pensava ser um hiato temporário. Muitos mapearam planos para preencher o tempo que gastavam no deslocamento para ter novos hobbies, como aprender um idioma, fazer pão ou conseguir o melhor físico de suas vidas. Parecia o começo de uma revolução do teletrabalho.

Um mês e meio depois, as pessoas estão sobrecarregadas, stressadas e ansiosas para voltar ao escritório. Nos EUA, pessoas que trabalham em casa conectam-se três horas a mais por dia do que antes dos confinamentos na cidade e no estado, de acordo com dados da NordVPN, que rastreiam quando os usuários se conectam e desconectam do trabalho. Entre todos os países que a NordVPN rastreia, os trabalhadores dos EUA são os que se ligam por mais tempo. Em França, Espanha e Reino Unido, o dia de trabalho estende-se por mais duas horas, segundo dados da NordVPN. Em Itália, não houve mudanças.

Os horários da jornada de trabalho também mudaram. Sem o tempo de deslocamento, as pessoas acordam mais tarde, segundo a NordVPN, mas o horário de pico de e-mails se deslocou para as 9h da manhã, de acordo com dados da Superhuman. Os funcionários também voltam a logar-se mais tarde, à noite. A Surfshark, outro provedor de VPN, observou picos de uso da meia-noite às 3h da madrugada que não estavam presentes antes do surto de covid-19.

Huda Idrees, diretora-presidente da Dot Health, uma startup de tecnologia com sede em Toronto, confirma que os seus 15 funcionários estão a trabalhar, em média, 12 horas por dia, acima das 9 horas pré-pandemia. "Estamos em nossos computadores muito cedo, porque não há tempo de deslocamento", disse. "E, como ninguém sai à noite, também estamos sempre lá."

Um grande problema é que não há escapatória. Sem muito o que fazer e sem nenhum lugar para ir, as pessoas sentem que não têm uma desculpa legítima para não estarem disponíveis. Um funcionário do JPMorgan interrompeu os seu banho matinal para participar numa reunião improvisada depois de receber uma mensagem de um colega no Apple Watch. Quando se secou e voltou a conectar-se, estava cinco minutos atrasado.

Depois, há o facto das pessoas transformaram os seus espaços em escritórios improvisados, tornando quase impossível desligar-se. Ter um quarto extra ajuda, mas não muito, disse John Foster, que está em casa em Tuscumbia, Alabama, desde meados de março, responsável pela conformidade financeira e uma fábrica. O seu espaço de trabalho fica ao lado da sala de estar. "Uma pessoa anda 20 vezes por dia", disse. "Cada vez que passa por ali, não escapa ao trabalho."

Neste ponto, até sente falta do tempo que se deslocava para o emprego. "Geralmente, tinha aquela pausa para voltar para casa ou para se preparar para o dia", disse.

Outros dizem que sentem pressão dos patrões para provar que estão a trabalhar, principalmente porque a economia sofre um impacto e a perspectiva de demissões se aproxima. Na Constellation Software, em Toronto, mais de 100 funcionários receberam um e-mail de um superior que dizia: "Não se distraia porque está sozinho. É fácil adquirir maus hábitos, a atração da Internet. Basta pensar, eu faria isso no escritório? Se for um não, não faça", dizia o e-mail visto pela Bloomberg. "Você sabe que vamos monitorizar as coisas de perto", escreveu o mesmo gerente na mensagem anterior. Um representante da Constellation Software não respondeu aos nossos SMS’s e e-mail pedindo comentários.

 

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