Prazeres / Entrevista

Francis Ford Coppola: “ Não tenho o talento de Spielberg ou Polanski”

O lendário realizador fala da recuperação do seu mais famoso flop, O Padrinho – Parte III, com uma nova versão – e sobre um épico de ficção científica de há 30 anos que está já na forja.

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21 de dezembro de 2020 | Robbie Collin

"Houve um ladrão que foi condenado à morte pelo rei", diz Francis Ford Coppola, inclinando-se para a frente na sua cadeira. "E o ladrão apela: ‘Senhor, não me mate! Sei o quanto gosta de cavalos. Pois bem, posso ensinar o seu cavalo a falar. Só lhe peço três meses e terá o único cavalo falante do seu reino’".

O realizador, galardoado com vários óscares está numa videochamada na cozinha da sua casa na Califórnia: a cinzenta luz do dia do início da manhã é filtrada pelas persianas e são visíveis, em cima do balcão, duas garrafas de vinho tinto da sua vinha familiar.

"O rei concorda em poupar a vida ao ladrão e envia-o para os estábulos do palácio", prossegue Coppola. "Um empregado do estábulo pergunta-lhe por que motivo ali está e ele explica. ‘Isso é de doidos’, responde o empregado. ‘O   que vais fazer ao fim dos três meses?’. ‘Muita coisa pode acontecer em três meses’, responde o ladrão, encolhendo os ombros. ‘O rei pode morrer. A lei pode mudar. Posso vir a ser perdoado. E, quem sabe, talvez até consiga conseguir pôr o cavalo a falar’".

Coppola tem 81 anos e faz filmes há 60: obras obscuras, mas delicadas, como a trilogia de O Padrinho, O Vigilante [The Conversation] e Apocalypse Now. Mas em todos eles, explica, viu-se a si próprio como o ladrão da parábola, comprando um indulto temporário na esperança de conseguir, de alguma forma, que o seu mais recente cavalo falasse. Passou os últimos anos preocupado com os cavalos que não falaram – ou que, pelo menos, não falaram tão alto e de forma tão clara como ele gostaria. Fez por duas vezes novas versões de Apocalypse Now, tendo lançado em 2011 e em 2019 essas novas variações de uma viagem demente de Joseph Conrad no Vietname; em 2017, lançou uma versão mais longa do filme The Cotton Club. Depois destes, foi altura de enfrentar o filme que sempre o incomodou mais.

À terceira é de vez: O Padrinho, Coda: A morte de Michael Corleone

Em finais da década de 1980, Coppola aceitou uma proposta há muito feita pela Paramount para fazer um terceiro filme de O Padrinho, que continuaria a história da família mafiosa Corleone a partir de onde tinha ficado – de forma bastante conclusiva, sentiram muitos – no final da Parte II. A decisão que tomou teve como pano de fundo um cenário de devastação profissional e pessoal. Em 1986, o filho mais velho de Coppola, Gio, morreu num acidente de barco com 22 anos, ao passo que o fracasso comercial do seu musical e néon Do Fundo do Coração [One From the Heart] tinha feito descarrilar a sua carreira e levado à falência o seu estúdio cinematográfico uns anos antes. A Paramount, que estava à procura de um lucro rápido e fácil para a época festiva de 1990, mostrou-se muito recetiva. Mas já corria o mês de fevereiro de 1989, deixando a Coppola apenas seis semanas para concluir um guião com Mario Puzo, o argumentista dos romances de O Padrinho, e depois menos de um ano a partir do momento em que as câmaras começassem a filmar uma versão final e pronta para o lançamento.

O resultado – lançado com o nome de O Padrinho - Parte III, e que teve uma receção pouco entusiástica – sempre fez com que Coppola sentisse que tinha falhado uma oportunidade.

"É um filme longo e complexo, com muitos elementos em movimento", diz. "E fi-lo o melhor que consegui. Mas, anos mais tarde, percebi que havia imensas coisas que não estavam tão claras como teriam ficado se eu tivesse tido mais tempo para pensar".

Al Pacino, Andy Garcia, Sofia Coppola, John Savage, Al Martino, Don Novello e Eli Wallach em O Padrinho: Parte III (1990)
Al Pacino, Andy Garcia, Sofia Coppola, John Savage, Al Martino, Don Novello e Eli Wallach em O Padrinho: Parte III (1990) Foto: IMDb

Assim, desde inícios deste ano, o seu projeto do confinamento [decorrente da pandemia de covid-19] foi uma reedição exaustiva com tudo o que escapou no filme, com uma história reordenada, trechos musicais alterados, diferentes escolhas para as cenas, menos três minutos de duração, um arranque mais forte e uma cena final mais funesta. Ah, e também um novo título: The Godfather, Coda: The Death of Michael Corleone.

"O Mario [Puzo] e eu sempre quisemos chamar ao filme A Morte de Michael Corleone, em vez de lhe dar o número de uma sequela, e aborreceu-me que nunca nos tivessem permitido isso", conta Coppola. "O objetivo do filme era esclarecer a nossa história original, em vez de a continuar".

Desde logo, decidiram que deveriam traçar aquilo a que Coppola chama de "morte moral" do reformado chefe da máfia interpretado por Al Pacino, uma vez que o império do negócio familiar – agora legítimo – e o estatuto social mais elevado da sua família são derrubados pelos seus alicerces corruptos e sanguinários. Teria de ser um tipo de história muito diferente, mais lírica do que épica, acerca da necessidade de Michael de ver os pecados da sua família absolvidos pela Igreja Católica – "que, ironicamente, era uma quadrilha maior do que a Máfia", graceja Coppola. (O enredo faz simultaneamente referência à súbita morte do Papa João Paulo I em 1978, que inspirou teorias da conspiração, e ao escândalo papal bancário de inícios da década de 1980). A Paramount não ficou convencida; eles queriam uma repetição daquilo que viam como sendo a fórmula vencedora de O Padrinho. Para eles, o cerne do novo filme era a personagem de Vincent Mancini interpretada por Andy Garcia – o impetuoso filho ilegítimo de Sonny, o falecido irmão mais velho de Michael, capaz de personificar a violenta e impiedosa ascensão ao poder e a latência ítalo-americana originalmente apresentada por Al Pacino.

Al Pacino em O Padrinho: Parte III (1990)
Al Pacino em O Padrinho: Parte III (1990) Foto: IMDb

Mas o coração de Coppola continuou a estar centrado em Michael, que ele tinha começado a encarar como uma espécie de alter ego – um homem cuja motivação para o sucesso tinha sido substituída por um crescente medo do custo que isso implicava. Uma das condições de Coppola era que o cabelo escuro com um corte à Lord Byron da personagem interpretada por Al Pacino fosse substituído por um corte militar [o chamado ‘crew cut’], mais austero, e com tons grisalhos. O maquilhador Dick Smith ficou tão horrorizado com a ideia que abandonou a produção – ao passo que Diane Keaton, que interpreta o papel da ex-mulher Kay de Michael, disse a Coppola em privado que achava que era absurdo.

Diane Keaton e Al Pacino em O Padrinho: Parte III (1990)
Diane Keaton e Al Pacino em O Padrinho: Parte III (1990) Foto: IMDb

"O que eu estava realmente a fazer era a dizer que o filme iria resistir ao caminho mais fácil que qualquer outro filme de O Padrinho pudesse tomar", explica. "Eu nunca seria um realizador invariavelmente bem sucedido porque nunca desejei repetir-me". Também não permitiu que o dissuadissem de tomar uma decisão em matéria de casting que acabaria por provocar uma grande controvérsia. Para desempenhar o importante papel de Mary Corleone – a filha adolescente de Michael que acaba por ser tragicamente morta por uma bala dirigida ao seu pai –, escolheu a sua própria filha Sofia, então com 18 anos. Atualmente, Sofia Coppola é, também ela, uma aclamada realizadora: "mais conhecida e mais apreciada do que eu", afirma Coppola com orgulho. Mas, naquela altura, ela era apenas uma estudante de artes que acompanhava o seu pai em trabalho, sem qualquer formação ou experiência. Os jornais descreveram esta escolha como "um dos mais gritantes casos de nepotismo na história do cinema", ao passo que os críticos cinematográficos a expuseram ao ridículo ao referirem-se-lhe como a "falta de graça de um pequeno ganso".

Sofia Coppola
Sofia Coppola Foto: Angela Weiss/AFP via Getty Images

No entanto, ela só ficou com o papel – sendo avisada com apenas 24 horas de antecedência – depois de a atriz inicialmente escolhida para a personagem (Winona Ryder, então com 18 anos) se ter retirado devido a um esgotamento nervoso um dia antes da sua suposta chegada às filmagens. "Não tinha mais nenhuma cena para filmar sem a Winona (…)", recorda Coppola. Quando ela desistiu do papel, Coppola diz que ficou com duas opções em mãos: suspender a rodagem por tempo indeterminado ou recorrer à rapariga que ele tinha tido em mente enquanto escrevia aquele papel. "Estava a ser imensamente pressionado para escolher entre outras atrizes, mais conhecidas mas com a idade errada", diz. Uma era Madonna, que aparentemente já estaria de malas feitas. A outra era Annabella Sciorra, que viria a ser uma estrela em Sopranos e que tinha acabado de fazer um papel de estreia bastante elogiado na comédia romântica True Love. "Ela era uma atriz maravilhosa, mas tinha quase 30 anos", explica. "E eu tinha escolhido a Winona por ser uma miúda".

Enredo bizantino: Al Pacino no papel de Michael Corleone

O desempenho de Sofia foi visivelmente reformulado na nova versão, com alguns momentos desconfortáveis removidos e outras cenas re-trabalhadas ou eliminadas por completo. Mary permanece uma presença desajeitada e inocente, mas essa sempre foi a intenção de Coppola. "Ainda se consegue ver as gordurinhas de criança no seu rosto", afirma. "A Sofia é simplesmente a pessoa que foi no filme: a única menina, muito doce, numa família de rapazes e homens, precoce e peculiar, mas também ingénua". Hoje, Coppola vê um horrível paralelo nos destinos das duas raparigas. "A metáfora é agora óbvia para mim", diz. "Quando o filme foi lançado e toda a gente a atacou, as balas disparadas contra a Sofia eram, na verdade, dirigidas a mim. As críticas feitas àquela menina de 18 anos que nem sequer queria ser atriz visavam magoar-me a mim, e foi o que aconteceu". Ainda assim, tê-la escolhido para o casting foi uma decisão da qual afirma nunca se ter arrependido, e à qual sente agora que foi feita justiça – tanto pela passagem do tempo como pela sua nova versão. "Agora toda a gente sabe que ela não estava interessada em seguir uma carreira de atriz", declara. "Quando lhe pedi para fazer aquela cena, ela só o fez por mim".

Sofia Coppola em O Padrinho: Parte III (1990)
Sofia Coppola em O Padrinho: Parte III (1990) Foto: IMDb



Atualmente, Coppola está convicto de que tem em mãos mais um grande filme: um utópico épico de ficção científica chamado Megalopolis, que tem estado a escrever e a planear há 30 anos. "O meu talento não é o talento dado por Deus que vemos no William Wyler, no Steven Spielberg ou no Roman Polanski", diz com uma risada. "Eles simplesmente fazem acontecer. Eu tenho de trabalhar arduamente nisso. Mas se uma pessoa reescreve um argumento 100 vezes e se em cada nova versão o melhora em 1%, então acabará por estar 100% melhor do que ao início". Para o ilustrar, Coppola mostra para a câmara um guião do tamanho de uma caixa de sapatos. E é isto, concluído com um subtítulo tomado de empréstimo a um livro de H. G. Wells – "The Shape of Things to Come" [‘A forma das coisas que virão’, numa tradução literal] – e com um epígrafo retirado de um poema de Alfred Tennyson, que me lê em voz alta: "Porque imergi no futuro, até onde o olho humano pode ver, vislumbrei a visão do mundo e todo o encanto que viria a ser". "É isto que quero expressar no filme", sublinha, explicando que o enredo acompanha uma batalha sobre o futuro de uma grande cidade americana, entre um presidente de câmara defensor do poder instituído e um arquiteto visionário sobre o futuro de uma grande cidade americana.

Coppola já abordou Jude Law para interpretar uma dessas duas personagens, tendo-se fixado nele para o papel depois de ver a sua interpretação de Hamlet na Broadway em 2009. Prudente em termos financeiros, Coppola diz que o seu filme "não está ao nível de realizadores como Ridley Scott ou Christopher Nolan", mas que custará significativamente mais do que os seus próprios três filmes mais recentes: Uma Segunda Juventude [Youth Without Youth], Tetro e Twixt.

Coppola tinha planeado financiar o Megalopolis com as receitas dos seus negócios do vinho e hotelaria – "mas agora, com a pandemia, os cinemas estão encerrados e a maioria das minhas empresas está fechada, e não sei se haverá possibilidade de voltar a ganhar esse tipo de dinheiro". Faz uma pausa. "Sei que se não conseguir o dinheiro, posso simplesmente publicar o argumento e dizer: ‘este é o filme que quis fazer’. Aceito que não conseguimos fazer os filmes todos que desejamos". No entanto, este tem um significado diferente para ele. Não é como ter falhado o Pinóquio, a sua planeada adaptação da história infantil que foi por água abaixo na década de 1990. "Para mim, a alegria do cinema tem sido aprender a captar as suas diferentes formas", explica. "Ou seja, o que poderia ser mais diferente entre O Padrinho e Apocalypse Now, ou entre Apocalypse Now e Do Fundo do Coração, ou entre Do Fundo do Coração e Juventude Inquieta [Rumble Fish]? Em cada filme que fiz, procurei aprender algo de novo. Agora sinto-me pronto para pôr tudo isso em prática".

Créditos: The Telegraph/Atlântico Press

Tradução: Carla Pedro

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