Estilo / Moda nacional

Nuno Gama: “Nem todas as pessoas se identificam com o espectáculo da Moda”

Como peixe na água, assim está Nuno Gama para a Moda. Com um papel preponderante no design masculino nacional, aceitou o desafio de criar os novos uniformes da Fertagus. Um regresso à infância na margem sul, como descobrimos durante uma conversa no seu atelier na baixa lisboeta.

30 de setembro de 2019 | Rita Silva Avelar

Nome sonante na moda nacional, Nuno Gama [Azeitão, 1966] conquista qualquer pessoa de imediato, quer pela sua natural empatia quer pela evidente abertura de espírito e mente. Além de um exímio designer é um excelente conversador, descobrimos, ao longo desta entrevista, que teve como ponto de partida o facto de ter sido eleito pela Fertagus para assinalar o 20º aniversário desta empresa portuguesa do Grupo Barraqueiro com novas fardas. Integrando a campanha "Sobre o Tejo. Sobre Si", o novo fardamento assenta também nos quatro pilares da empresa: mobilidade, integração, sustentabilidade e eficiência, e é um claro caminho para a modernidade da empresa. Além deste marco, é inevitável tocar na história da sua infância feliz, do fascínio pela Moda, nos sonhos que sempre perseguiu, nos desfiles que marcaram as décadas de oitenta e noventa, e mudaram a ideia de vestuário dos homens portugueses. Da criatividade constante e da inspiração que não acaba. Das memórias do Porto bairrista e do Porto emergente. Com 26 anos de marca homónima (fundou-a em 1993), e 31 a trabalhar como designer, são muitas as histórias para contar.

Cresceu em Azeitão. Que recordações e que imaginário juvenil tem desses tempos?

Tenho dois dias ou três para falarmos sobre o meu imaginário! Vou estar eternamente em dívida com a minha família. A primeira coisa que nos une a todos, os tios, os primos, os amigos, é uma união familiar muito ao estilo de família tradicional portuguesa, mas ao mesmo tempo com uma pincelada de ar fresco introduzida pelo tio Sebastião da Gama. Cresci com histórias sobre como tínhamos que ser direitinhos, corretos, boas pessoas, honestos, honrados… uma fórmula exemplar que nos era dada por toda a família. Mas ao mesmo tempo ouvíamos outras histórias do meu tio. Contava: "o tio uma vez vinha de Lisboa, passou numa florista, comprou um ramo de flores para dar à tia Joana Luísa, mas entretanto encontrou uma série de pessoas pelo caminho e ofereceu as flores todas". Paralelamente com isto, havia uma espécie de religiosidade à volta dos "problemas" do tio Sebastião. Os livros eram tocados de forma diferente, havia algo que não era só respeito, era uma aura especial que ele tinha.

Diria que era uma família com uma aura especial?

Essa aura especial fez com que esta família fosse formal, conservadora (igual às outras todas) mas ao mesmo tempo muito especial. Pelo valor dado às coisas, olhar e ver mais, dar a volta, contornar, sair do nosso "sítio" e pormo-nos em causa, fazermos perguntas, sonharmos e sobretudo realizarmos os nossos sonhos. Havia uma alegria permanente. Fazíamos espetáculos, fazíamos gincanas, entretínhamo-nos uns aos outros. Fazíamos asneiras. Havia uma dinâmica familiar aliada à magia da Serra da Arrábida, que tornou a minha infância – olhando para traz – num mega diamante reluzente com o qual eu parti debaixo do braço à minha vida sem perceber muito bem. Precisei de fazer a minha viagem de ir e de voltar para ter saudades.

Isso moldou muito quem é como designer? Quando é que começou a despertar para a moda?

Sim, moldou muito a forma como me posiciono em relação às coisas. A estética faz parte da minha infância desde o início porque eu sempre desenhei, sempre desenvolvi coisas manuais de alguma forma e sempre escrevi. Recordo-me de brincar muito com legos, e os legos eram casas muito bem estruturadas, onde havia terraços, jardins (…) quando era miúdo dei um esticão gigante e nessa altura (nos anos 70) não havia a mesma oferta de coisas. Aí houve uma preocupação em fazer roupa para me vestir. E nesse momento eu pensei que queria escolher eu o que achava que devia vestir. Aliei a minha pintura e o desenho, o meu lado artístico, às t-shirts… pintava-as. Comecei a vender t-shirts na escola, aos amigos, aos primos… até que chega a altura em que resolvo pintar um fato de banho para mim que maravilhou toda a gente. Resolvi fazer fatos de banho, vendi-os para uma loja em Lisboa que era a Mr. Wonderful (uma colaboração que começou por volta de 1985/1986).

Diz que o seu primeiro desfile foi como sempre imaginou…

Estávamos em 1988, ou 1989… e a Teresa Guilherme, o José Manuel Trindade, e o Rui Horta desafiaram-me a apresentar um desfile. E eu sempre imaginei que o meu primeiro desfile seria numa noite de verão, de luar, fantástica, à beira-mar, no Padrão dos Descobrimentos e com a música da Carmina Burana. E quando percebi que esse sonho se tinha realizado foi pura magia.

Estudou no CITEX [hoje Modatex] no Porto, uma cidade onde sempre se disse que os homens se vestiam de forma mais elegante e cuidada. É verdade? Como é que encontrou esta cidade, na altura?

Na altura em que fui para o Porto havia ali um ponto de encontro artístico em torno do Parque Itália. Ir para o Porto estudar e mais tarde ter o primeiro pedido de uma coleção foi um capítulo que solidificou muito a minha história. O Porto é uma cidade de residentes (ou era nessa altura) e toda a gente se conhecia. Quando eu chego ao Porto para mim é muito evidente a existência de uma malha social burguesa do norte. Depois há toda uma nova vaga de vanguarda… nós reuníamo-nos muito na zona do coração da Boavista, havia o Parque Itália, depois vem o Brasília, depois vem a discoteca Griffon’s… Por exemplo, eu conheci lá o Rui Reininho numa festa do dia das bruxas. Vinha transportado dentro de um caixão! Na altura era namorado da Fernanda Gonçalves, que era nossa professora de História da Moda.

Era uma cidade muito diferente do que é hoje?

Sim, era uma cidade de costas voltadas para o rio. O rio era sinónimo de inundações e de desastres catastróficos. Era uma coisa que me fazia muita impressão. Fiquei contente de ver essa alteração ao longo dos tempos. Depois há o Porto bairrista que é absolutamente fascinante, feito de pessoas que são autênticas enciclopédias vivas de linguagem, que têm uma forma de estar desprendida de regras formais que muitas vezes temos. Era divertidíssimo, hilariante. Ainda hoje conto histórias aos meus amigos sobre o Porto "autêntico". Depois há o Porto cultural: nessa altura a cidade tinha uma cápsula que se queria afirmar perante o país, que envolvia todo o tipo de artes e os novos conceitos de formas de estar que se estavam a afirmar nessa altura.

O corpo masculino é muito evidenciado nos seus desfiles. Tentar representar vários tipos de corpo foi sempre uma intenção?

Os meus clientes são assim. Tenho clientes que vão ao ginásio e os que não vão, outros jovens, outros com 60 anos. Uma coisa que tenho vindo a perceber, toda a vida, é que há pessoas que não se identificam com o espectáculo da Moda. O que eu faço é tentar contar uma história que lhes toque de alguma forma, e depois pelos próprios manequins tentar que sejam pessoas distintas. Por que não surfista, por que não punk? Há uns anos atrás dividíamo-nos muito por "eu sou comunista, tu és fascista; eu sou do Sporting, tu és do Benfica; eu sou judeu, tu és católico".

Hoje em dia vivemos num "melting pot"…

Hoje em dia isso não faz qualquer sentido, o mundo mudou de tal forma que as pessoas se misturaram todas. Hoje em dia, na minha rua, tenho pessoas do mundo inteiro a falar línguas que às vezes nem sei de onde é a sua origem. Isso é um grande sinal de mudança. O facto de nascermos aqui não nos obriga a estar aqui: as pessoas mudam-se para onde acreditam haver mais sol, mais sabor, melhor ar, onde está o amor, por tantas coisas…

A criação de guarda-roupas para espetáculos de dança e teatro e o desenvolvimento de uniformes para diversas entidades foi um pouco por onde começou o seu percurso. Quão desafiante foi fazer agora as fardas da Fertagus?

Uma das primeiras coisas importantes que fiz foram as fardas dos museus portugueses e ganhei o concurso dos uniformes da PT. O desafio da Fertagus foi desenhar as novas fardas para o aniversário da empresa. A imagem que tinham na altura era equivalente ao que têm hoje, na base do formal, da camisa e da calça ou saia. O proposto foi uma imagem mais objetiva, que fosse facilmente identificada por todos e que reforçasse a imagem da empresa. Se os clientes passarem a identificar melhor os funcionários e se perceberem que existe uma sinalética diferente, de alguma forma a missão está cumprida.

Que elementos não poderiam faltar nesta mudança?

O que se tentou fazer foi transpor este conteúdo para um guarda-roupa menos formal, capaz de rejuvenescer a empresa, mais económico pela tipologia de peças (e de mais fácil manutenção). Em relação aos sapatos, o que se propôs desde o início foi um ténis. Ao uniformizarmos esta imagem, tendo uma coisa comum a ambos os sexos, facilita a leitura.

Que mensagens se encontraram neste vestuário que nos remetem para a Fertagus?

Chegámos a uma imagem super objetiva que transmite dinamismo e juventude à empresa, e que inclusivamente tem a ver com o próprio movimento do transporte e da deslocação – o que é evidenciado nestas riscas diagonais que cortam as peças. Acaba por ser uma espécie de ponte ou trajecto que vai e volta.

O que é urgente mudar na Moda?

A Moda não comanda o planeta. Temos que ser nós, pessoas, a fazer esse caminho. Porque é que as pessoas desperdiçam água com a torneira aberta? Porque é que em vez de ter um carro com gasolina ou gasóleo não tenho um elétrico? Porque é que nós não pomos essa dúvida a nós próprios? Ainda temos a esperança de que seja o Governo a mudar por nós. E ainda achamos que o que mudamos não faz muita diferença – e faz. Porque se cada um de nós individualmente fizer a sua mudança, no fim o balde do lixo fica diferente. E sobretudo os oceanos ficam diferentes. Há uma coisa que me preocupa muito, e toda a gente fala da poluição do planeta, mas esquecemo-nos que a coisa mais essencial deste planeta é a água. Só conseguimos respirar se a água fizer a oxigenação do ar (e os oceanos estão poluídos). Ao falarmos do oxigénio não falamos só das árvores, temos de pensar no mar. Vi uma campanha do Oceanário há pouco tempo sobre as beatas, e há duas coisas que passei a fazer: não deito beatas para o chão e separo a beata do resto do cigarro, a beata vai para o plástico, o resto vai para o lixo. Dá trabalho, mas o planeta agradece. Agradeço eu porque deixo alguma coisa aos meus queridos sobrinhos, aos filhos dos meus amigos, afilhados e a todos os outros. Comunico isto com as pessoas, de alguma forma, não lhes peço para fazer mas digo: eu faço. É um julgamento que cada um tem que fazer por si só.

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As novas fardas desenvolvidas por Nuno Gama são de produção 100% nacional e procuraram responder às necessidades dos funcionários da Fertagus, que passam muitas horas em pé, estão expostos ao frio no inverno ou ao calor no verão e precisam de uma indumentária confortável. Além disso, procurou-se transmitir valores como qualidade, eficiência, confiança e simpatia. As cores da empresa mantiveram-se e o uso do azul, vermelho e verde continuaram a ser os destaques. O novo fardamento vai chegar aos 115 colaboradores da Fertagus, dos quais 45 são da área de Produção e 70 da área Comercial. A coleção foi apresentada na estação do Pragal.

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