Conversas

João Tordo, a insustentável leveza de o ser

Ao décimo segundo livro, dificilmente ouviremos falar de literatura com a paixão que João Tordo emprega. Descubra o que o move e porque escolhe ser escritor numa época que quer, à viva força, condenar a Literatura.

João Tordo
João Tordo Foto: Pedro Ferreira
04 de setembro de 2019 | Pureza Fleming

João Tordo é um exemplo de rigor que desmonta os demais clichés do escritor. Encontrei-o escassos minutos depois da hora combinada, num café de esquina perto de sua casa, na zona da Lapa lisboeta. A chuva atrasara-me, mas não a ele. "Sou superdisciplinado! Acordo normalmente às seis e meia [da manhã] e escrevo sempre no período do dia em que estou mais alerta, entre as oito e o meio-dia. A noite não me serve para escrever, mas para dormir e fazer outras coisas." Também não conhece a procrastinação, a não ser que esteja a fazer alguma coisa que não lhe apetece e isso não inclui a escrita dos seus romances: "Sou muito produtivo [na escrita de romances] por se tratar de uma coisa que gosto mesmo de fazer." Dúvidas houvesse, os onze livros publicados em 14 anos de vida de escritor comprovam-no. Há muita paixão pela escrita nas palavras de João Tordo. Contadas, foram cerca de dez as vezes em que, ao longo da conversa, confessou o seu amor pelo que faz. Desde muito novo que sabia que o queria fazer: "Eu tinha uma enorme necessidade de estar sozinho e lia muito." De bandas desenhadas e de autores como Júlio Verne e Sherlock Holmes, passou, com apenas 13 anos, para o Crime e Castigo de Dostoiévski. "A experiência foi completamente impactante e fascinante: eu poder perceber que era possível um livro prender a atenção durante três ou quatro dias – o tempo que levei a lê-lo – e estar completamente submerso num mundo em que me identificava tanto com as personagens como com as emoções e a narrativa. Aquilo fez-me um clique e, a partir daí, passei o resto da vida a pensar que queria replicar aquela emoção. É por isso que escrevo livros porque quero reproduzir aquela sensação a quem lê."

João Tordo
João Tordo Foto: Pedro Ferreira

Começou a escrever muito novo, mas apenas para si. "Foram anos a imitar os escritores de que gostava, o Raymond Carver, o José Cardoso Pires… Imitava-os a todos e fui construindo isso. Só aos 28 [ou] 29 anos é que tive coragem de pegar num manuscrito e enviar para uma editora. Essa oficina não está a acontecer na geração mais nova. A escrita está muito imediatizada." Fala-se do estilo da sua escrita e de colegas seus, como Gonçalo M. Tavares e Afonso Cruz, que já dispensam a capa para se saber que os estamos a ler. "Há uma ideia generalizada de que José Saramago chegou a uma certa idade, que teve uma epifania e que começou a escrever daquela forma. O que as pessoas não percebem é que são décadas de trabalho, de oficina de escrita, até se conseguir aquela voz que depois se tornou a dele, única e inconfundível. Comigo vai acontecendo o mesmo e isto é algo que talvez falte um bocadinho à geração de hoje, facilmente influenciável pelas redes sociais, pelas coisas imediatas… Falta um pouco dessa oficina de escrita que implica estar em silêncio durante muitos anos."

Com um pé bem fincado na terra, o escritor diz não ligar muito às redes sociais, limitando-se aos mínimos necessários, e que evita ao máximo alimentar o lado do cérebro ligado a esse sistema da recompensa imediata: "Não gosto de o fazer porque, como qualquer pessoa, sou facilmente influenciável e viciável. De qualquer maneira, nós crescemos sem isso. Logo, é mais fácil desligar. Mas imagino o que será para alguém nascido em 2018… Como será um escritor daqui a 50 anos?" Debruçamo-nos sobre esse assunto e Tordo relembra o que disse Philip Roth, certa vez, numa entrevista: que o romance seria apenas para um núcleo de pessoas que ainda tem a capacidade de concentração, de paciência e de tolerância para "aturar" 200, 300, 400 páginas de literatura. Tordo acrescenta que hoje temos um mundo completamente diferente e que no negócio dos livros é flagrante esta noção: "Já há fenómenos [livros] que nascem no Facebook, mas que são coisas diferentes. Quando se olha para os tops das livrarias, cada vez mais o que se destaca são livros de auto-ajuda, de bem-estar, de saúde… Tudo da autoria de uma geração que escreve nas redes sociais e que depois publica livros cuja função é essa. E a Literatura não tem nada a ver com isso. Cresci a ler livros de papel. Melville, Dostoiévski, Saramago… Eu não estou a dizer que seja melhor ou que seja pior… Mas acho que será uma geração que não tem essa base e a Literatura tornar-se-á uma coisa diferente. Num certo sentido, eu acho que os escritores literários de hoje escrevem contra a corrente."

João Tordo
João Tordo Foto: Pedro Ferreira

O que é que atormenta João Tordo? A passividade visível entre gestos e palavras em nada indica a tormenta que questiono. Porém, torna-se inevitável, não estivesse frente-a-frente com o escritor que, romance após romance, questiona o mundo. "Não conheço nenhum escritor que não sofra minimamente de depressão", desabafa. Falamos da hipersensibilidade que atinge as mentes mais criativas, aquelas capazes de criar histórias, seja através das palavras ou de outra arte qualquer. "A porta é só uma e dá para os dois lados. Se fechas a porta ao enfrascares-te em comprimidos, por exemplo, fechas a porta aos demónios, mas também aos anjos. Quando fechas a porta à ferida, fechas a porta à dádiva." Considera que as coisas, hoje, são diferentes e sente-se um afortunado. "Antigamente não havia a ajuda psiquiátrica, nem os programas de auto-ajuda, nem nada disso. Hoje é mais fácil sobreviver quando o espírito está toldado por uma depressão." E relembra os fins trágicos de alguns escritores que, à época, não conseguiram encontrar uma saída senão acabar com a própria vida, como Hemingway ou Virginia Woolf. Demonstra uma maturidade que diz ser causa da idade e que consiste em ter imensa compaixão consigo próprio, algo que aos 30 anos não conseguia fazer. "Foi um processo fruto de muito trabalho para ganhar esta noção de que não somos perfeitos, que as coisas são difíceis e que tudo passa. Pensar que ‘isto está negro e vai ficar negro para sempre’ é uma coisa de criança que se propaga pela nossa vida adulta. Ficamos muito tristes, não sabemos porquê e o mundo é um sítio insuportável. O que aprendi é que aos momentos negros sucedem-se períodos de grande desafogo e esperança." Não nega, contudo, a presença desses estados de espírito que são também germinadores de sensações únicas que o levam a escrever histórias únicas. "Um escritor é alguém que sofre de hipersensibilidade – ao mundo, aos outros, aos sentimentos… E a escrita é um grande veículo para deixar fluir essa energia da hipersensibilidade. Quando eu estou a escrever estou melhor porque a minha hipersensibilidade está veiculada ali. O mundo deixa de parecer um sítio tão difícil e agreste, as pessoas não me parecem tão maçadoras, tenho menos medos… Essas são boas fases, por isso escrevo quando estou bem." Confessa que aquilo que mais o atormenta é a mesma coisa que lhe traz a máxima felicidade. "Acordar e pensar: ‘Como é que eu vim aqui parar?’ É uma pergunta gira que nos leva a pensar que a vida é um intervalo. Não uma finalidade, mas um intervalo entre dois acontecimentos, dos quais não temos memória, que são nascer e morrer. E sendo um intervalo, às vezes levamo-lo demasiado a sério e às vezes levamo-lo demasiado a brincar. É um equilíbrio difícil, mas essa é a grande questão: ‘O que é que eu estou aqui a fazer? Porque é que estou aqui e, estando aqui e querendo estar aqui, o que é que eu posso fazer para estar bem comigo, com os outros e poder ajudar?’ E acho que nos meus livros há também aquela noção de identificação que é muito importante para mim." Admite que os momentos mais significativos não são quando alguém lhe diz que gostou muito do seu livro ou que escreve muito bem, mas antes quando sabe que o seu livro ajudou alguém neste sentido ou que outra pessoa se identificou de tal maneira com uma personagem que ficou a pensar nesse assunto. Entender que há algo nas suas obras, além do entretenimento puro que ajude quem as lê.

Chegamos, entretanto, ao seu mais recente romance, Ensina-me a Voar Sobre os Telhados (Penguin Books), que levo na carteira e inevitavelmente coloco em cima da mesa. Começou a escrevê-lo em Janeiro de 2016 e não era para ser um livro, mas um conto que acabou por não ser publicado. Depois da trilogia – prefere chamá-la de tríptico, já que uma trilogia significava que tinha uma sequência de narrativa que não há –, sente que este novo livro, ainda que tendo muitas coisas que aprendeu com a trilogia em termos formais, de técnica de escrita e de narrativa, acaba por ser estruturalmente mais parecido com o que fazia antes, conforme confessa. E relembra a Biografia Involuntária dos Amantes. Por sua vez, Ensina-me a Voar Sobre os Telhados debruça-se sobre a relação entre pais e filhos, um tema que não é sensível para o escritor que considera ter tido uma infância protegida e saudável. Contudo, acredita que são relacionamentos que passam sempre por fases menos boas: "Chega-se à adolescência e aquilo é sofrimento para toda a gente! E depois há a progressiva aceitação das pessoas como elas são. Há um filósofo italiano que escreveu um livro muito bonito que se chama A Bênção e a Ferida e que tem a ver com esta relação que temos com os nossos pais. Eles são uma dádiva e são uma ferida. E, a dada altura, a relação tem de ser trabalhada. Se não a compreendermos, torna-se mais difícil."

Quanto dói terminar um livro? Tanto quanto terminar uma relação com alguém de que se gosta. "É, simultaneamente, um enorme alívio e um grande vazio. Aquelas personagens estão ali, durante meses, senão anos, por isso quando acaba deixa saudades. Mas lida-se com isso da mesma forma como se lida com o fim de uma relação. Há um grande vazio e depois a vida recomeça. Quando é publicado desligo emocionalmente porque tenho de fazer aparições e aí é bom para mim já não estar tão conectado com o romance e estar já a fazer outra coisa... Dá-me objectividade para falar do livro com os leitores, perceber os pontos fortes e fracos." E acaba por confirmar: já está mesmo a fazer outra coisa. Um novo romance que vem reforçar o carácter disciplinado do escritor. Trata-se de um livro que só tem vozes femininas. "São três mulheres a contar a história e está a ser uma experiência fascinante porque consigo ouvir aquelas personagens a falar e consigo identificar as mulheres que passaram na minha vida… E não só da família, mas também amorosamente, amigas… Escavando, eu consigo sempre entender de onde é que vêm aquelas vozes. Por isso é que, às vezes, os escritores descrevem a experiência literária como uma experiência de algum sofrimento porque é preciso alguma escavação… Caminha-se lado a lado com as personagens e ao fazê-lo é como se estivesse também a caminhar. É terapêutico, mas pode ser doloroso." Di-lo e os seus olhos brilham, tal como sempre fazem quando fala da escrita. Mesmo quando enumera as mais que muitas exigências que ela lhe faz: uma vida "quase espartana" e muitas concessões. "Por exemplo, se eu tivesse tido uma família com três filhos, aos 30 anos, não conseguiria ter escrito os livros que escrevi. Seria impossível", confidencia. "E implica também um grau de obsessão que é a tal porta – a minha obsessão com a escrita é a mesma que tenho com coisas negativas, vem do mesmo lugar, do mesmo motor." Conta que quando começou a publicar livros, há 14 anos, impôs uma meta que era estar a viver dos livros aos 40. Não aconteceu. Ou melhor, ainda não aconteceu. Protelou então a data para os 45. De resto, não faz muitos planos. "Acho que o universo e a vida vão proporcionando os acontecimentos e não acho que tenha muito controlo sobre isso. Quanto mais corro atrás das coisas, mais elas me fogem. É uma regra quase universal. Neste sentido, os livros acabam por ser um espelho da vida. Eu não sei se eles resultam até determinada altura. Tenho em casa vários nados -mortos de 150 páginas porque 50 por cento não está sob o meu controlo. É sempre uma aventura, um desafio. Tal como na vida, quando conhecemos uma pessoa e não sabemos se aquilo vai funcionar." Na lista de planos só existe uma enorme vontade de continuar a escrever bons livros. "Estou numa fase de grande inspiração e quero aproveitá-la. Estou com medo de perceber quando é que este filão seca [risos]. Houve alturas em que não me sentia tão conectado ao que estava a fazer e agora sinto-me muito ligado. É muito saudável." Continuar a fazer o seu trabalho. "Estar caladinho e não perder tempo", reforça. "Como explicava o filósofo Séneca aos seus discípulos, é muito fácil pormo-nos na periferia do caminho que traçámos para nós e é facílimo uma pessoa desviar-se. E é humano estar-se na periferia, às vezes, mas quanto mais me dou conta disso, mais eu volto ao meu caminho e quanto mais volto ao caminho mais focado estou, melhor os livros me saem." Além da recomendação de Séneca, apoia-se em alguns pensamentos que o auxiliam na arte do foco, essencial à sua escrita. "O primeiro é pensar: ‘Este é o teu caminho e é isto que tu tens para fazer.’ E o segundo é: ‘Um dia vais morrer, portanto concentra-te naquilo que tu gostas.’ E o que eu gosto é de escrever livros." E para nós, leitores, isso é mais que suficiente.

Fotografia: Pedro Ferreira

Saiba mais João Tordo, Júlio Verne, Castigo de Dostoiévski, livros, literatura
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Juan Gabriel Vasquez, O Informador

Tem 47 anos, um passaporte cheio de carimbos e duas filhas à espera, no regresso a casa, na sempre desconcertante Colombia. Escritor convicto e leitor apaixonado, o autor de O Barulho das Coisas Antes de Cair ou A Forma das Ruínas, obras distinguidas com um coro de elogios e vários prémios, passou por Lisboa para regressar à sua primeira obra, Os Informadores.

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