Conversas

Pedro Mafama: “Sempre quis fazer música para chegar a toda a gente”

Depois do sucesso dos singles "Estrada" e "Preço Certo", aí está o novo álbum de Pedro Mafama, "Estava No Abismo Mas Dei Um Passo Em Frente", composto por 12 temas nos quais o artista celebra, baila e canta o seu atual estado de espírito. Será pela primeira vez apresentado ao vivo no dia 7 de junho, com uma atuação no arraial do Centro Magalhães Lima em Alfama, repetida dia 23, no Porto, na esplanada do Guindalense, um dos epicentros dos festejos de São João.

Foto: Carinho.Mio
02 de junho de 2023 | Miguel Judas

Houve um tempo em que Pedro Mafama, por duas vezes, quase caiu, de facto, num abismo metafórico, deitando tudo a perder. A primeira por receio, por achar que a sua música poderia não ser assim tão interessante para os outros, levando-o, constantemente, a adiar o tão desejado passo de se assumir enquanto artista. Pelo contrário, não só se interessou como se entusiasmou, como percebemos quando editou os EPs Má Fama e Tanto Sal, em 2017 e 2018, respetivamente, dando a conhecer uma música feita com kuduro, kizomba, afro-house, R&B, hip-hop, mas também fado e diversas referências à música popular portuguesa.

De um momento para o outro, foi elevado à condição de grande esperança da nova música portuguesa, tornando-se figura recorrente nos palcos dos clubes e festivais mais atentos à novidade. E foi então que quase caiu de novo, iludido pelo aparente sucesso, segundo palavras do próprio, "como aquele jovem jogador de futebol que é contratado por um grande clube, mas passado um ano já ninguém ouve falar dele". Regressaria no entanto em grande forma, em 2021, com o aclamado álbum de estreia Por este Rio Abaixo, no qual recuperou, à luz de uma certeira contemporaneidade urbana, a tradição, o popular e "algumas ligações esquecidas ou escondidas, que também fazem parte do que é isso de ser português". 

Pedro Mafama numa promoção para o seu novo álbum.
Pedro Mafama numa promoção para o seu novo álbum. Foto: Carinho.Mio

Mais recentemente, foi um dos produtores do disruptivo Casa Guilhermina, o álbum que reencaminhou a carreira de Ana Moura para novas direções. E agora é a vez do próprio dar outro passo em frente, não em direção ao precipício, ao contrário do que indica o título do novo álbum – Estava no Abismo Mas Dei um Passo em Frente – mas a uma assumida celebração da vida em ritmo de baile, como já se previa pelo sucesso dos singles de antecipação Estrada e Preço Certo. Um trabalho que corre o risco de ser visto como mais leve ou menos profundo, por ser assumidamente mais imediato, embora a pesquisa e as várias camadas continuem por lá, para serem descascadas por quem assim o entender. Mas acima de tudo, como assume neste entrevista à Must, feito de uma "música de comunhão", que une não só as pessoas, num ato tão simples como dançar, mas também improváveis universos sonoros, como o cante alentejano, as marchas populares, a música de baile ou a rumba portuguesa da comunidade cigana. 

Vai apresentar o álbum pela primeira vez ao vivo em Alfama, durante os Santos Populares, num contexto de baile e arraial que acaba por ser o habitat natural destas músicas, concorda?

Sem dúvida, aliás tínhamos isso em mente há algum tempo, precisamente por ser um álbum de celebração.

Devido a esse ambiente de festa, trata-se de um trabalho completamente diferente do anterior, que era muito mais melancólico. Pegando no título, porque é que decidiu dar esse "passo em frente"?

Sim, é diferente, concordo, mas também há uma certa continuidade. Quando comecei a compôr para este álbum, há cerca de um ano e meio, percebi que estava a ser contaminado por alguns vícios antigos. Talvez por escrever habitualmente à noite, muitas vezes já com um copo de vinho ao lado, começava-me a surgir logo um certo sentimento de melancolia. E nesse processo percebi que já não fazia sentido continuar a fazer música assim, de uma forma tão pesada e melancólica, porque já não representava aquilo que eu estava a viver. Ficou para mim muito evidente que tinha chegado a um lugar diferente na minha vida, que a dado ponto se transformou mais numa celebração e deixou de ser aquela solidão muito presente no Por Este Rio Abaixo. Decidi, então, tentar fazer música que representasse esse momento que estava a viver e foi assim que começaram a surgir estas marchas. E estou muito feliz por ter conseguido fazer um álbum que continua a explorar a música popular portuguesa, agora com referências completamente diferentes, mas nem por isso menos válidas, porque o assunto é o mesmo.

Crê que essas referências são de certa forma mais injustiçadas que as anteriores, por serem mais ligadas à festa, ao baile, ao verão e por isso vistas como mais ligeiras?

Sem dúvida, aliás a minha luta, agora, é mesmo a de não associar a alegria à leveza. Porque é que o Por Este Rio Abaixo é considerado um álbum épico e grandioso e este é encarado como um projeto menor por alguma parte da crítica? Se calhar tem um pouco a ver com o facto de encararmos os tormentos da alma a sentimentos nobres, ao nível da criação. Enquanto a alegria, o bem viver e o bem-estar são vistos como algo menor na hierarquia das Artes. E apesar do álbum ser muito recente, já sinto um bocadinho esse estigma. E é isso que pretendo combater com este disco, essa hierarquia da "alta" e da "baixa" cultura. Ao mesmo tempo que sinto que este álbum está a ser muito mais vivido pelas pessoas, também sinto que, se calhar por isso, também é mais desvalorizado. 

Pedro cresceu no bairro da Graça, em Lisboa.
Pedro cresceu no bairro da Graça, em Lisboa. Foto: Carinho.Mio

Não será antes por ser um trabalho mais imediato, que apesar de continuar a ter muitas camadas para analisar e descascar, pode também ser consumido de forma mais leve e direta, começando simplesmente a dançar, por exemplo?

Mas foi mesmo isso que procurei fazer com este disco, algo que não fosse preciso estar constantemente a explicar. Sempre quis fazer música que chegasse a toda a gente. E da mesma forma que antes não percebia que tinha essa limitação, desta vez também não fiz um disco apenas com esse objetivo. Sempre quis pesquisar a nossa música popular e depois devolver essa pesquisa às pessoas sob a forma de algo novo, que homenageasse essa raiz. Nunca quis transformar essa pesquisa em algo elitista, bem pelo contrário.

Mas se calhar o Por este Rio Abaixo passava essa mensagem, de certa forma mais elitista, por ir lá atrás, resgatar as origens...

Talvez, sim, porque continuo sempre a querer dar uma leitura artística e intelectual ao que faço. Mas gosto é de juntar as duas vertentes ao mesmo tempo e sinto que neste álbum estou a consegui-lo, mesmo perdendo mais de um lado e ganhando do outro. Acima de tudo queria representar num disco aquilo que estava a viver, seguindo o meu instinto e a minha vontade.

E supostamente não deveria haver algo mais inspirador que a alegria...

Exato. Ainda há dias ouvi um político a dizer na rádio que devemos ter direito à alegria e isso parece-me uma boa causa. Às vezes temos tendência a encontrar conforto na melancolia, é algo muito português, como se comprova com o fado, que nos seduz pela tristeza. No disco há um tema que fala disso, chamado Estranha Magia, em que digo "quando cai o dia sinto uma estranha magia, uma certa melancolia que nos tenta namorar". Mas eu neste momento quero ir para outro lugar, mais alegre, porque isso me permite explorar uma escrita mais altruísta. Este sítio menos melancólico permite-me olhar à volta e ver além de mim, sem estar apenas preso aos meus sentimentos. 

Há um momento, no vídeoclip do tema Preço Certo, quando o público do concurso se levanta e começa a dançar à sua volta, de forma aparentemente espontânea, que prova estar a conseguir chegar a pessoas que à partida não seriam o seu público mais óbvio...

As pessoas levantaram-se por vontade própria e isso foi lindo de se viver. Mas sinto que isso também já tinha acontecido com o single Estrada, que foi o primeiro no qual assumi essa vontade de deixar de fazer temas mais cinematográficos para ir mais ao encontro das pessoas que sempre inspiraram a minha música. Mas esse efeito mais imediato também acontece porque as referências do Por Este Rio Abaixo são coisas que já desapareceram. Nessa altura a minha pesquisa foi sobre o passado, enquanto agora usei géneros musicais que estão vivos, como a música de baile, que está com uma pujança enorme, mas também as marchas ou as rumbas portuguesas.

As pessoas reconhecem-se mais no disco, é isso?

Se calhar no disco anterior tive mais necessidade de explicar a pesquisa e a tal carga intelectual e isso levou-o logo para um público diferente. E o facto de ser um álbum lento, menos dançável e mais melancólico também lhe retirou alguma utilidade no dia-a-dia. Pelo contrário, estas músicas, por serem mais alegres e dançáveis, podem ser tocadas em qualquer convívio familiar ou festa de amigos. Consegui fazer uma música de comunhão e isso aconteceu apenas por mudar a fórmula dos géneros musicais abordados. 

"Estava No Abismo Mas Dei Um Passo Em Frente" - Pedro Mafama Foto: Carinho.Mio

Qual foi a reação dos mineiros de Aljustrel à utilização do Hino dos Mineiros no tema Estrada?

Foi linda. Fomos encontrar-nos com eles, para gravarmos o videoclip e mostrar-lhes o tema já feito. Confesso que estava muito receoso, aliás passei algum tempo com eles, a ouvi-los cantar e a beber vinho, adiando sempre o momento de lhes mostrar a música, com medo da reação deles e que me expulsassem dali mal a ouvissem, porque tinha a perfeita noção do significado e da força identitária daquele hino. Mas aconteceu precisamente o contrário, adoraram. Um deles começou logo a bater palmas ao som da rumba e mal a música acabou abraçaram-me todos, quase me atiraram ao chão (risos). E quando me vinha embora um mineiro disse-me algo muito bonito e me marcou muito: "Pedro, compreendo muito bem os teus receios, mas essas tensões, que acontecem no terreno, entre pessoas, são uma coisa, e a música e a poesia são outra, onde tudo isso tem de desaparecer". Esse é também um dos meus objetivos, juntar universos musicais aparentemente distantes mas com muito mais em comum do que se julga, como é o caso da música cigana e do cante alentejano.

A música cigana ou rumba portuguesa, que está muito presente no disco, será talvez um dos géneros mais esquecidos em Portugal. Porque é que isso acontece?

Porque é feita por uma comunidade completamente ignorada, marginalizada, injustiçada e oprimida. Mas que faz parte do universo português da música de baile e por isso queria inclui-la no disco. Aliás só facto de se chamar a si própria rumba portuguesa já o assume, portanto a exclusão está mais no nosso olhar e no nosso preconceito. E é importante encurtar essa distância, porque há uma inovação musical muito importante a acontecer, feita por uma comunidade que merece muito mais reconhecimento.

Mas esse tipo de mensagem não se dilui na alegria e no ambiente de festa que transborda deste álbum?

O facto de ser um álbum mais alegre não o torna menos subversivo, muito pelo contrário. A minha luta continua a ser a mesma. E continua a não ter um nome ou uma causa específica, porque é uma luta que passa por aproximar campos que a sociedade insiste em afastar, por fazer ligações entre universos improváveis e isso tem um potencial revolucionário imenso, que continua a estar presente neste disco.

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